ea83be16-b866-4c56-949c-a24ac6b2a60cEra difícil de entender tanta informação. Três homens de corpo muito magro se rebolando de modo lascivo. Nem mesmo a barba de dois deles era capaz de masculinizá-los. O terceiro tinha a voz aguda de uma moça e usava esse recurso de um jeito provocante e sensual. As roupas eram cheias de penas, plumas, brilhos e mal cobriam-lhes as vergonhas. O som que esse grupo fazia também não era nada assim tão fácil: uma mistura de poesia, rock, política, blues e performance.

No entanto, todo esse caos parecia fazer sentido quando o Secos & Molhados começava a tocar. O grupo que revelou os nomes de Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad foi, por si só, uma revolução dentro da já criativa cena musical dos anos 70. Depois da explosão tropicalista ao longo de 1967, a onda da nova década era buscar espaço para brigar contra a caretice imposta pela censura militar. E, nesse assunto, o trio foi primordial.

A história do Secos & Molhados começa na cabeça de João Ricardo, português que mudou-se para o Brasil para fugir do salazarismo. Acompanhado de pai, mãe e irmãos, teve o azar de cair em outra ditadura. Aqui ele começou uma promissora carreira jornalística, mas trocou tudo pela música. Bem no início da década, ele se reuniu com os hoje anônimos Fred e Pitoco para montar a banda com que sonhava há tantos. Até nome já tinha. Poucos se interessaram por essa estreia e logo João se viu sozinho novamente. Foi então que ele começou a ensaiar canções com o vizinho Gerson Conrad – com quem dividia a admiração por Beatles e Crosby, Stills, Nash & Young. Tendo em mente um tipo de voz e interpretação para suas composições, foi a compositora Heloisa Orosco Fonseca, a Luli, quem sugeriu um jovem ator que, na época, morava no Rio de Janeiro.

Curioso para conhecer o dono dos tão falados tons agudos, João Ricardo partiu de São Paulo para conhecer o hippie mato-grossense, ex-funcionário de hospital, chamado Ney de Sousa Pereira. Contando ainda com o baterista Marcelo Frias, eles passaram um ano fervendo aquele caldo de canções políticas, transgressoras e atrevidas. A estreia dessa nova formação aconteceu em São Paulo, no Theatro Ruth Escobar em 1973. As maquiagens pesadas (puxadas do teatro kabuki), os figurinos exóticos e a performance inquietante de Ney caíram como uma bomba naquele cenário de ditadura.

Despertando amores e ódios por onde passavam, logo o Secos & Molhados se transformou no maior fenômeno da música brasileira que se tinha conhecimento até então. Fenômeno esse que repercutiu no primeiro disco do grupo, lançado em agosto de 1973, que trazia críticas pontiagudas como Primavera nos dentes e Rosa de Hiroshima e doçuras singelas como Rondó do capitão e As andorinhas. Em tudo, uma forte dose de política, contribuição da formação comunista de João Ricardo. Sempre nas cabeças dos discos mais importantes da música brasileira, o álbum Secos & Molhados ultrapassou um milhão de cópias.

O sucesso alcançado por aquela mistura de temperos musicais, teatrais, brasileiros e apátridas, foi estrondoso ao ponto de levar milhares de pessoas para um show realizado no Maracanãzinho. Outro tanto incalculável ficou do lado de fora tentando ouvir os novos ídolos. Numa época em que o show business nacional ainda suava para conta do serviço, Ney, João e Gerson começavam a exigir cada mais profissionalismo. E foi nesse ponto onde eles acabaram implodindo. A medida que se tornavam uma usina de fazer dinheiro, João Ricardo exigia seus direitos de criador e principal compositor colocando os companheiros de palco no papel de empregados.

Uma batalha de egos se formou no centro do grupo. Marcelo Frias já havia desistido há tempos. As brigas começaram a tomar um nível insustentável, em grande parte provocadas por ciúmes, direitos autorais e dinheiro. Um segundo disco foi lançado em 1974, mas eles sequer trabalharam as canções. Injustiçado e igualmente espetacular, o Secos & Molhados “volume dois” seria abandonado pela banda que iria se desfazer dias depois. Ao longo desses 40 anos, a troca de farpas foi mútua entre Ney, João e Gerson, que nunca mais voltaram se falar. Comemorações dos 40 anos de estreia, por exemplo, estão completamente fora de questão.

Apesar do tempo curtíssimo que durou, o legado deixado pelo Secos & Molhados é de valor inestimável. Cheios de coragem e beleza, os dois discos são indispensáveis e foram relançados em 1999 num único CD produzido por Charles Gavin (ex-Titãs). Como postura, ainda hoje eles são referência de androginia, ecletismo e liberdade. Sem cair na vulgaridade, Ney, principalmente, colocou o corpo como instrumento para seu trabalho, avançando na estética comportada exigida pelos militares. Claro, que foram ofendidos, patrulhados e censurados. Mas também foram amados, copiados e admirados. Como eles mesmos defendiam, “quem tem consciência pra se ter coragem, quem tem a força de saber que existe, no centro da própria engrenagem inventa contra a mola que resiste”.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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