* Texto escrito para a revista O POVO Cenário Nº 2

charles gavin

Gavin com o disco Todos os olhos, de Tom Zé

Existe uma máxima dita por aí que trata das coisas antigas: “quem vive de passado é museu”. Discordo. Prefiro acreditar em Renato Russo, que cantava “o futuro não é mais como era antigamente”. E, usando o tema deste espaço, a música, posso comprovar. Um passeio pelas grandes lojas de discos que ainda resistem e você pode encontrar uma série de títulos lançados primeiramente em LP agora apresentados em versão CD.

Essa enxurrada de disquinhos prateados no lugar dos antigos bolachões se deve ao trabalho de pesquisadores que se embrenham nos arquivos das gravadoras em busca daquele disco lançado décadas atrás, mas que acabou esquecido embaixo de um monte de poeira. Entre esses arqueólogos, um dos nomes mais conhecidos é do paulistano Charles Gavin, ex-baterista dos Titãs e apresentador do programa Som do Vinil (Canal Brasil).

Desde 1999 nessa empreitada, o músico já foi responsável por mais de 500 reedições. Entre elas, os dois únicos LPs do Secos & Molhados (Série Dois Momentos), as décadas de 1960 e 1970 de Marcos Valle (no box Tudo) e o único trabalho da power band de Hermeto Pascoal e Lanny Gordin, Brazilian Octopus (série Som Livre Masters). Charles Gavin agora está envolvido com a Coleção Cultura, projeto encabeçado pela Livraria Cultura que já tirou do “umbral” 20 discos, nacionais e internacionais, que passeiam por clássicos obscuros do sambajazz até o progressivo brasuca. Outros 10 estão sendo planejados para o segundo semestre.

Já nas lojas, Herbie Mann & João Gilberto & Tom Jobim (1962), por exemplo, é um encontro de estrelas da maior grandeza em torno da Bossa Nova. Filho de russos e romenos, criado em Nova York, Herbie era um apaixonado pelas possibilidades artísticas do banquinho e violão. O mesmo pode ser dito do cantor americano Jon Hendricks, que homenageou o pai da Bossa Nova em Salud! João Gilberto (1961). Outra preciosidade, há tempos esquecida, é o cartão de visita do arranjador Artur Verocai. Lançado em 1972, agora relançado em CD e LP, o disco mistura jazz, funk e soul, com uma roupagem elegante e participações fundamentais de Célia e Carlos Dafé.

O descobridor de música

Marcelo Fróes e Zé Ramalho

Outro nome que virou sinônimo de resgate da música brasileira foi o do jornalista e produtor Marcelo Fróes. Há 10 anos à frente do selo Discobertas, ele tirou a poeira trabalhos raros de Beth Carvalho, Zé Remalho e Celly Campelo. No primeiro semestre de 2012, comemorando 60 anos de carreira, Cauby Peixoto teve nada menos que 12 discos embalados em duas caixas. Entre os títulos, o revigorante Cauby! Cauby! (1980) e o luxuoso Cauby canta Sinatra (1995).

Em seguida, em parceria com a Warner, ele lança a Coleção Discobertas com 12 títulos raros ou, em sua maioria, inéditos em CD. É o caso de Tem que acontecer (1976), segundo álbum da curta discografia de Sérgio Sampaio. Conhecido pelo sucesso Eu quero é botar meu bloco na rua, o conterrâneo marginal do rei Roberto Carlos tratou com inteligência assuntos como as clínicas psiquiátricas (no fox Que loucura) e a comercialização da arte (Cada lugar na sua coisa). Os cearenses também têm seu espaço com o esquecido Amelinha (1987), estreia da cantora na Continental, e Ave Noturna (1975), segundo disco de Fagner.

Também estão na mira da Discobertas dois artistas responsáveis por renovar os quadros da Bossa Nova. Um deles é o organista pernambucano Walter Wanderley, que este ano completaria 80 anos de vida. Vitimado por um câncer em 1986, enquanto residia nos Estados Unidos, o músico ganha como homenagem duas caixas contendo oito discos lançados entre 1959 e 1963. Festas Dançantes Vol. 1 e 2, assim como a caixa Zimbo Trio (2011), trazem o filé do sambajazz brasileiro em versões suingadas. O outro é o paulista Sérgio Ricardo, adepto da ala mais política da Bossa, que também completa 80 anos. Seu presente vai ser a reedição dos desconhecidos Do lago à cachoeira (1979) e A noite do espantalho (1974). Este último é a trilha sonora de um filme “glauberrochiano” do próprio Sérgio e tem adesões de Alceu Valença e Geraldo Azevedo.

Um farol para as vozes femininas

Conhecido pelos figurinos exóticos apresentados em programas de auditório, o DJ Zé Pedro também aproveitou seu prestígio no meio musical e fundou, há pouco mais de um ano, a Joia Moderna. A gravadora, mais do que resgatar discos, tem como missão trazer de volta à ativa cantoras há tempos fora do mercado fonográfico. E um detalhe: são somente cantoras. Nesse terreiro, homem não tem vez.

A única exceção ficou por conta do baiano Edy Star, homossexual assumido. Cantor e ator performático que dividiu o disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10 com Raul Seixas, ele teve seu único disco solo, Sweet Edy (1974), reeditado pela Joia em formato de luxo, com biografia e álbum de fotos. Com canções inéditas de Roberto, Erasmo, Caetano e Gil, Sweet Edy é uma obra única na MPB, que alinha rock e samba-canção com muita propriedade.

Ainda no hall dos relançamentos, Alvoroço (1973) serviu para apresentar ao público uma nova Leny Andrade. Marcada pelos graves profundos sempre ligados à Bossa Nova, a diva cedeu espaço para um repertório mais suingado e plural, que inclui Fagner e Belchior (Moto 1) e uma inédita de Milton Nascimento (Bolero). Também apontando para vários lados, Feiticeira (1975) é a trilha de um espetáculo de Marília Pêra, que acabou nunca sendo encenado. Antenado à sua época, o disco tornou-se cult, tanto pelo repertório meio psicodélico, quanto pela participação dos então iniciantes Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Lobão e Lulu Santos.

Mas, nada poderia marcar mais a curta história da Joia Moderna do que o compromisso em “jogar luzes sobre as vozes femininas”, como diz o próprio Zé Pedro. Foi por isso que ele gravou Ave Rara, curiosamente o terceiro disco dos quase 30 anos de carreira de Silvia Maria. Depois de Porte de Rainha (1983) e Coragem (1980), a paulistana ficou escondida em pequenos palcos, o que fez Zé Pedro peregrinar pelas casas noturnas de São Paulo até localizá-la. Com as mesmas boas intenções, ele também lançou Senhor do Tempo, tributos de canções raras de Caetano Veloso na voz privilegiada de Cláudia. Há mais de uma década sem um disco inédito, Cláudia teve sua carreira marcada negativamente por um mal entendido com a espevitada Elis Regina. Há anos fora dos holofotes, marca o retorno de uma artista que fez fama no Brasil dos festivais. Por sorte, suas saudades vão poder ser resolvidas com a ajuda do farol certeiro de quem sabe dar valor aos que fazem a história na música brasileira.

> Bate-Pronto com Zé Pedro

Alvoroço foi um dos relançamentos da Joia Moderna

Cenário – Quais suas primeiras lembranças musicais?

Zé Pedro – A música foi minha primeira escolha. Os discos que minha mãe escutava foram minhas primeiras informações. Em seguida, aos sete anos, descobri a cantora Maria Bethânia e a partir dela fui descobrindo outras cantoras.

Cenário – Como é sua coleção de discos?

ZP – As prateleiras são enormes, a quantidade inumerável. Procuro periodicamente fazer uma triagem e dispensar álbuns que não resistiram ao tempo em termos de qualidade e repertório, principalmente os produzidos no Brasil nos anos oitenta. Essa década fez muita mal à MPB devido aos arranjos repetitivos e letras cafonas.

Cenário – Como estão os planos da Joia Moderna para 2012?

ZP – Milhares de cantoras clamam por mim das prateleiras. Esse semestre ainda sairá um disco da cantora Fernanda que teve seu excelente primeiro disco lançado em 1980 com inéditas de Caetano Veloso e Joyce e que o mercado esqueceu. O primeiro disco da gravadora em 2012 será o tributo às canções de Guilherme Arantes na voz de vinte intérpretes como Zizi, Possi, Vanessa da Mata, Fafá de Belém e Maria Alcina. Será a primeira parceria com o Itunes proporcionando uma venda maior visto que a tiragem da Joia Moderna para cada disco é de apenas mil cópias.

> Bate-pronto com Marcelo Fróes:

Zé Ramalho também teve seu “baú” visitado pela Discobertas

Cenário – Como nasceu a ideia de montar a Discobertas?

Marcelo Fróes – Nunca foi ambição minha ser dono de gravadora. Mas, quando o mercado começou a entrar em crise e muitas vezes as gravadoras não podiam realizar certos projetos que eu propunha, um presidente de gravadora sugeriu que eu abrisse um selo pra viabilizar esses projetos. Eu até titubeei um pouco, achando que seria um passo largo demais, mas fui em frente e o grande apoio veio de Erasmo Carlos – cuja gravadora Coqueiro Verde nos distribuiu no primeiro ano de atividades. Foi efetivamente nossa incubadora.

Cenário – Como você seleciona o que vai ou não ser reeditado?

MF – Eu ajo instintivamente, não fico fazendo consultas nem pesquisas. Naturalmente procuro ter juízo, porque embora hoje em dia as tiragens sejam modestas, elas ainda assim não podem encalhar. Mas eu geralmente reedito os discos que, como colecionador, sempre quis comprar e nunca achei. Ou os discos que nunca tiveram uma reedição decente, com capa original etc.

Cenário – Queria que você fizesse um passo-a-passo para se colocar um trabalho de volta às prateleiras.

MF – Licenciamento dos direitos sobre o master, tanto com o dono do produto como com o artista. Localização do master, para digitalização e remasterização. Autorização das canções por parte dos compositores e/ou de suas editoras. Escaneamento, tratamento e projeto gráfico para mudança de formato de capa e encarte. É muita coisa!

Cenário – A Discobertas é um projeto viável?

MF – Sim, mas exigiu muito tempo e paciência. Como se diz, “trabalho de formiguinha” que continua.

> Bate-pronto com Charles Gavin:

O primeiro lançamento de Charles Gavin foi na série Dois Momentos

Cenário – Como começou se trabalho de resgate da música?

Charles Gavin – No meio dos anos 1990, vi um show do Airto Moreira em Londres. Era uma mistura de jazz, com música brasileira e pegada rock’n’roll. Nesse momento, caiu uma ficha e eu caí de boca nos discos de samba jazz. Mas, me incomodou saber que eu tinha acesso a esses discos, por que pagava caro, e mais ninguém tinha. Então me bateu uma vontade de produzir discos e uma vontade de retribuir os benefícios que a música me trouxe. Achei que, uma forma de retribuir fosse trazer de volta discos que estavam fora de catálogo.

Cenário – E como aconteceu o primeiro?

CG – Quando cheguei na Warner, que já era nossa gravadora, tinha duas coisas que queria fazer: botar de volta o disco do Secos & Molhados e resgatar o acervo da Continental. Quando disse isso, os caras riram. “Não tem nenhum artista relevante no acervo da Continental”. Então, fomos para a segunda opção, que era o Secos. Vendeu mais de 50 mil cópias muito rapidamente e não sai mais de catálogo.

Cenário – Como você seleciona o que vai ou não ser reeditado?

CG – A seleção envolve critérios econômicos e pessoais. Só boto disco que eu gosto, mas tem que ter relevância artística. O Brazilian Octopus, por exemplo, não foi o item que vendeu mais, mas é um projeto super importante no meio da coleção. É como um time de futebol. Tem uns que aparecem mais, mas cada um tem sua função. O conjunto tem que ser vencedor e um disco ajuda o outro.

Cenário – Apesar de ter feito fama numa banda de rock, é curioso ver o quanto você gosta de samba e bossa nova. Já havia pensado alguma vez em montar projetos paralelos para tocar esses estilos?

CG – Já tive vontade, mas não fiz. Gostaria de montar uma banda par tocar samba jazz. Eu me identifico muito com o Charlie Watts, que toca nos Rolling Stones, mas tem os projetos dele de jazz. Eu ouço de tudo, mas gostaria de ter uma banda pra tocar samba jazz.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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