* Matéria publicada na revista O POVO Cenário Nº5

rita-lee-atras-do-porto-tem-uma-cidadeA década de 1970 chegou lançando desafios para os dois maiores ícones do rock brasileiro. Prestes a dar adeus a os Mutantes, Rita Lee começava a engatinhar no que viria a ser sua carreira solo. Já Erasmo Carlos chegava aos 30 anos de idade tendo que aprender a lidar com casamento, filhos, violência, revoluções tecnológicas e um planeta em ebulição. Para ambos, era o fim das preocupações juvenis da década anterior.

Por sorte, para Rita e Erasmo, todas essas transformações acabaram sendo canalizadas para o trabalho e virando discos os antológicos, que acabam de receber reedição na coleção Três Tons, da gravadora Universal. Tal como subentendido no título, cada caixinha traz três CDs, que, no caso dos dois gigantes da música brasileira, contam uma história curiosa nas entrelinhas.

nholookPara Rita Lee, o box abraça os três primeiros passos do que viria a ser sua longa prolífica carreira solo. O primeiro capítulo dessa história é o disco Build Up (1970), feito por insistência do produtor André Midani, que via naquela ruivinha de humor sacana uma potencial estrela. Como a cantora ainda vivia em lua de mel com os Mutantes, quatro quintos da banda participam do projeto. Apenas o guitarrista Sérgio Dias se negou a bancar a empreitada, pois achava que isso não fazia bem ao grupo. Assim sendo, para seu lugar foi chamado o guitar hero maluquete Lanny Gordin.

O jeito irônico e libertário dos Mutantes permeia todas as 11 faixas de Build up, apesar do claro desejo de se distanciar do original. O mesmo não pode ser dito de Hoje é o primeiro dia do resto das nossas vidas (1972). Apesar de ser creditado como o segundo solo de Rita, esse é um disco 100% Mutantes. O fato é que eles estavam empolgados com a inauguração novo Estúdio Eldorado e resolveram dar uma chegada pra fazer um som na moderníssima mesa de 16 canais. A brincadeira ficou tão boa que eles quiseram lança-la em disco.

três tons rita leeAí veio o nó. Eles já haviam lançado naquele ano o disco Mutantes e seus cometas no país dos bauretz e a gravadora não achou interessante colocar dois LPs dos Mutantes nas lojas ao mesmo tempo. A solução foi dar um jeitinho brasileiro e deixar Rita assinar o disco sozinha. Infelizmente, esse também acabou sendo o último trabalho da paulistana com os irmãos Baptista. Já separada de Arnaldo, ela seria sumariamente cortada dos Mutantes ainda em 1972, protagonizando uma das mais incertas lendas do rock nacional.

Atravessando um longo inferno astral e buscando um novo rumo artístico, Rita Lee lançou seu, de fato, primeiro trabalho solo em 1974. Atrás do porto tem uma cidade inaugura a parceria da paulistana com a banda Tutti Frutti, que contava com Lúcia Turnbull, Luis Carlini e Lee Marcucci. Mesmo andando pra frente, ela não esconde a mágoa dos antigos companheiros em músicas como Ando jururu ou Mamãe natureza. Ainda assim foram quatro grandes discos ao lado dos novos colegas, até que Roberto de Carvalho entrou na vida da roqueira e tudo mudou novamente.

Tremendão

aa0a4536a2796bb5daf683ed5e29e157Para Erasmo Carlos os anos 70 também chegaram exigindo mudanças. A Jovem Guarda havia perdido o espaço da década passada e pouca gente estava interessada em histórias de namorinhos inocentes ou carrões a 120 por hora. Além disso, o casamento com Narinha e a chegada dos filhos faziam o compositor passar por um momento de mais maturidade. Pra completar, havia a eterna sombra de Roberto Carlos, que relegava o Tremendão a um papel de simples parceiro do Rei.

Agora trabalhando na Philips, Erasmo deu início à década com o disco que até hoje é considerado seu maior clássico: Carlos, Erasmo (1971). Escudado por parte dos Mutantes, o tijucano resolveu abraçar o ideário hippie reunindo composições próprias e presentes de amigos para fazer algo que divergia completamente do clima Jovem guarda. Tem samba-rock (Agora ninguém chora mais), hino bicho grilo (Gente aberta) e crítica às convenções sociais (Não te quero santa).

tres tons erasmo carlosSonhos e memórias (1972) mergulha ainda mais fundo nesse mundo de paz e amor, sem deixar de lado a vida doméstica. Isso fica registrado na foto interna do disco: um Erasmo barbudo, um violão, uma barraca, uma fogueira, mulher e filho. Nada mais Woodstock. No disco, o olhar nostálgico (Largo da  2ª feira, Bom dia rock’n’roll e Vida antiga) fica ao lado das primeiras brigas conjugais (Grilos) e do amor por Narinha (Sorriso dela).

Mas, como o que é bom dura pouco, Erasmo Carlos viu que aquele mundo hippie chegara ao fim e que estava na hora de acordar para levar os filhos ao colégio. Antes, ele fez A banda dos contentes (1976), que contou com os vocais do efêmero trio Karma. Mais uma vez, o encarte trazia um desenho onde vários “erasmos” brigam a esmo. Eram os conflitos de uma época, que também apareciam em Queremos saber, Análise descontraída e Filho único. Mas logo os anos 1980 bateriam à porta do músico que, assim como Rita Lee, pode aproveitar curtir o sucesso de uma nova época de mais tranquilidade.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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