Por Camila Holanda (camilaholanda@opovo.com.br)

Muito antes da criação de registros físicos da música, as mulheres do Ceará entoavam seus cânticos em festas e rituais ancestrais pelas terras do Estado. Esta cultura foi herdada pelos povos que vieram depois e são lembradas até hoje. Muitas destas influências vieram das mulheres indígenas que por aqui viviam. Vieram também das negras do continente africano, que, escravizadas, chegavam ao Ceará, mas não deixavam de lado seus vínculos culturais com a terra de onde foram arrancadas. As colonizadoras europeias também muito deixaram germinando pelas bandas de cá.

Por três anos, o cantor, compositor e pesquisador Pingo de Fortaleza ocupou-se de talhar estudos que fizessem um resgate histórico de como o feminino se estabeleceu no cancioneiro cearense. Esta pesquisa deu origem ao livro Pérolas – O Feminino no Cancioneiro Cearense. 1900 – 2017 – Histórias e Relatos de Vida e à Coleção Solo Feminino, lançando três CDs com 56 músicas gravadas pelas mais diversas gerações de mulheres que fazem parte de movimentos musicais do Estado.

O livro, muito além de nomes, como Tânia Cabral, Téti, Ângela Linhares, Amelinha, Marta Aurélia, Kátia Freitas, Lorena Nunes, Nayra Costa e Lìdia Maria, traça um panorama histórico sobre as múltiplas criações das mulheres na música do Estado. Voz, poesia, melodia, produção, quebra de paradigmas, renovação e revolução. Tudo isto faz parte. E está lá nas páginas do livro, em formato de pesquisa e nas vozes das protagonistas destas movimentações.

“A gente pode afirmar que um dos primeiros registros musicais aqui do Ceará é de composição da Hilda Marçal Matos. Em 1927, Francisco Alves, um dos grandes cantores da época, gravou duas músicas dela”, narra Pingo. As composições Pequei em te beijar e Beijos em excesso foram lançadas em disco do artista, pela gravadora Odeon. Estas histórias, inclusive, são relatadas no livro, com repertório histórico resgatado do acervo do pesquisador Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez.

Por vezes, Hilda assinava suas composições com o pseudônimo de Adlih Sotam (seu nome grafado ao contrário), algo que era muito comum entre mulheres artistas. Retrato dos tempos, em que a mulher deveria seguir outra cartilha. Ser artista não era bem visto pela sociedade.

No livro, a cantora Goretti, conta que, à época dos anos 1970 e 1980, os homens a viam com desrespeito por ser cantora. “Lembro dos grandes amores da minha vida que, no auge das paixões, com tudo o que tem direito, olhavam pra mim e diziam ‘Goretti, eu jamais vou poder assumir nosso relacionamento, porque você é uma cantora’”, relata a artista na obra.

A cantora, compositora e jornalista Mona Gadelha define: “Existe um machismo nesta área. É surpreendente”, observa. “Nos anos 70, eu enfrentei muitos preconceitos. Não foi nada fácil. Historicamente, havia pouco espaço para a mulher instrumentista, pouco reconhecimento para as compositoras. Se falava muito mais nas cantoras”.

“É uma soma de resistência e de lutas. E a gente chega hoje a um lugar que tem muito o que ser conquistado, mas que está muito melhor que décadas atrás. O feminismo é importante nesta construção, é uma uma atitude política de resistência diante de um mundo machista. Nós estamos virando a mesa”, encerra Mona.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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