Para se ter uma noção de quem foi Dalva de Oliveira, ela foi uma das principais influências de Angela Maria, esta que é a mais importante voz feminina viva e ativa no Brasil, e que influenciou gente como Elis Regina, que segue influenciando jovens cantoras mesmo passados 36 anos de sua morte. No início dessa escala hierárquica está a paulista de Rio Claro nascida em 5 de maio de 1917 com o nome de Vicentina de Paula Oliveira.

Dona de agudos lancinantes e interpretação encharcada de emoção, Dalva fez história no samba-canção no fim dos anos 1930. O repertório precioso cabia perfeitamente naquela voz de maneirismos muito particulares, que parecia narrar as desventuras da própria cantora. Sim, ela gozou todas as benesses da fama, mas sofreu com as limitações de uma época ainda mais machista. A parceria de vida e arte com Herivelto Martins rendeu um volume de grandes canções antes, durante e depois da conturbada separação. Separada de um compositor famoso, afastada dos filhos, colecionando amores desfeitos e gravações de sucesso, começou a beber e fumar fazendo da vida um dramalhão à altura do que cantava.

Edy Star, Marina de la Riva, Filipe Catto, Verônica Ferriani, Célia e Xênia França

E como ela cantava! E esse canto derramado de paixão e desilusão foi celebrado em duas noites de 2017. Lançado no mês passado pela Biscoito Fino, Dalva de Oliveira 100 Anos Ao Vivo reuniu um time de fãs da estrela Dalva de diferentes gerações reinterpretando músicas que não podem ser esquecidas nunca. Neste Mesmo Lugar é uma delas, cantada por uma Angela Maria impecável num tom mais cool. Admiradora incondicional de Dalva, a quem dedicou um tributo em 1997, a Sapoti é quem lidera a fila de 31 convidados divididos entre Rio de Janeiro e São Paulo.

A noite paulistana aconteceu em julho de 2017, no Teatro J Safra, e traz a parte mais sedutora da homenagem. Além de Angela, Claudette Soares brilha com seu canto sussurrado em Segredo, enquanto Cida Moreira solta a voz em Velhos tempos, sem economizar na interpretação operística e teatral. O mesmo faz Edy Star, que brinca com o tango Fumando Espero, tema que abre espaço para o baiano de 80 anos explorar seu modo explosivo de interpretar. Em meio há tantas estrelas com décadas de história, a presença de Filipe Catto surpreende, embora ele surpreenda em Tudo Acabado e Errei sim. O mesmo não acontece com Marina De La Riva, que soa apagada em Estrela do Mar.

Alaíde Costa, Virgínia Rosa, Tetê Espídola, Cida Moreira e Ayrton Montarroys, convidados do tributo (Foto Divulgação)

Já a noite carioca foi gravada no Centro Cultural João Nogueira, em agosto de 2017. Com alguns escorregões, mas muita emoção, a abertura é com Eliana Pittman fazendo festa com Olhos Verdes. Em seguida, Júlia Vargas refaz o clássico Que Será com o peito aberto, notas altas, bem à altura da homenageada. O mesmo faz Simone Mazzer, que solta a garganta em Lencinho Branco. Na contramão, a voz rouca e perfeita de Leny Andrade é toda charme e melancolia em Há um Deus. Sem o clima carnavalesco, Amelinha faz Bandeira Branca em tom de oração e homenagem.

Angela Maria, ótima performance em tom cool

Contando ainda com As Bahias e a Cozinha Mineira, Zé Renato, Agnaldo Timóteo, Tetê Espíndola e outros vários nomes, Dalva de Oliveira 100 Anos Ao Vivo não tem um destaque imediato e esmorece pela uniformidade dos arranjos. Ainda assim, o cardápio de intérpretes é tão variado que permite agradar e atrair diferentes ouvintes. Além disso, embora esteja naquela gaveta onde são esquecidos os artistas que não caçam curtidas, Dalva de Oliveira é dona de um repertório primoroso que, sempre que for revisitado, merece ser ouvido.

Mais convidados
CÉLIA
O disco traz a última gravação de Célia, falecida em 2017 aos 70 anos. Com a classe de sempre, ela faz Mentira de amor.

ELIANA PITTMAN
Enteada do saxofonista Booker Pittman, Eliana fez fama nos anos 1960 cantando jazz com o padastro. Um show inédito deles, no Porão 73, está sendo lançado em LP pela Discobertas. Vale ouvir.

ZEZÉ MOTTA
Bem sucedida atriz e cantora, Zezé Motta segue viajando o Brasil cantando Elizeth Cardoso. Para celebrar Dalva, outra estrela do rádio, ela canta Máscara Negra.

SIMONE MAZZER
Cantora e atriz de mão cheia, Simone usa sua voz poderosa a serviço de um repertório nada óbvio. Com dois discos no currículo, ela é uma das artistas brasileiras mais surpreendentes de sua geração.

Serviço:
Dalva de Oliveira – 100 anos Ao Vivo
32 faixas
Biscoito Fino
Preço médio: R$ 52,90

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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