Foto: Leo Aversa/ Divulgação

Por Renato Abê (renatoabe@opovo.com.br)

A carioca Joyce Moreno nunca se projetou uma grande cantora. “Dentro da estante da Música Popular Brasileira, a prateleira onde sempre tentaram me colocar foi a das cantoras, mas eu não me incluo ali, porque meu objetivo sempre foi a composição. Eu uso a voz e o violão como ferramentas.”, conta a artista, em entrevista ao O POVO. Segundo a autora de canções como ClareanaEssa mulher, o machismo acabou tirando dela espaços de atuação. “Compor era uma brincadeira de meninos. As meninas ficavam meio de fora”, analisa, sem perder o bom humor. A despeito dos empecilhos, Joyce completa agora 70 anos de vida, 50 de carreira e segue mais atuante do que nunca – ela está, inclusive, indicada ao Prêmio da Música Brasileira 2018.

Ao todo, são mais de 40 álbuns lançados e 400 composições dela gravadas por artistas como Elis Regina, Ney Matogrosso e Maria Bethânia. Antes de toda essa trajetória, porém, havia uma menina de 19 anos que, ao encher a boca para falar do “seu homem” numa composição com eu-lírico feminino, atraiu olhares e ganhou vaias no 2º Festival Internacional da Canção, em 1967. “Aquela mulher era uma menina em busca do seu futuro, do seu caminho. Aquilo chocou”, remonta. A tal música polêmica é Me disseram, faixa que acaba de ser relançada junto com todo o primeiro álbum dela, intitulado Joyce, de 1968.

Entretanto, para a surpresa da artista, a canção gerou controvérsia até na era do streaming. “Nessa regravação que fiz, Me disseram saiu no Spotify com selo de Explicit (voltado a conteúdo adulto). Eu falei com os representantes da Biscoito Fino (gravadora do álbum) e já até tiraram. Falaram que foi engano, mas achei engraçado ser justamente essa música”, conta, destacando não ter a composição nenhum palavrão ou conteúdo pejorativo. Para ela, a suposta confusão é até simbólica dos tempos nos quais vivemos. “Já tem meio século (do álbum) e o que a gente vê hoje em dia é um retrocesso muito grande acontecendo, isso é uma coisa que preocupa”, reflete.

Apesar do marco da primeira obra em 1968, a cantora considera como uma estreia mais contundente seu álbum Feminina, de 1980. “Com 30 anos de idade foi que realmente eu me senti pronta realmente com todas as aptidões que eu viria a desenvolver ao longo dos anos seguintes. É quase como se fosse meu primeiro disco. Eu fiz os arranjos, escrevi quase todas as letras”, se orgulha.

Capa do novo disco de Joyce, revisitando o álbum de estreia

Nessa mesma década, quando estava finalmente dona de si, Joyce sofreu uma baixa. “Eu tive uma questão judicial com a minha gravadora da época, a Odeon, porque eles usaram toda a base de uma música minha, mas tiraram minha voz para fazer o lançamento de outra cantora”, relembra, narrando ter batido de frente com o fato, o que rendeu uma dispensa da empresa – mesmo estando “no auge das vendas” de sua obra. “Só décadas depois fui saber que houve uma reunião de alto nível com os presidentes das grandes gravadoras para que nenhuma dessas me contratasse mais para não criar um precedente”. Àquela altura, pré-internet, se lançar sem aparato institucional era ainda mais complexo, mas foi a maneira encontrada para continuar. “Eu tinha que encontrar uma fábrica para fazer o disco físico, que não era nem CD, era o LP ainda. Tinha a distribuição que era um grande problema, era sair de porta em porta vendendo disco”, explica.

A falta de opção que levou à cantora a se lançar independente acabou surpreendendo positivamente pela possibilidade mais variada de alcance do trabalho dela. “Sem os limites da gravadora, meus discos começaram a chegar no Japão, na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos. Os exportadores começaram a querer comprar esse disco e levar”, conta. A partir daí, Joyce passou a se apresentar fora do Brasil e ter liberdade para construir suas agendas da maneira que julgou correta – conquistando, por consequência, olhares da crítica. “Já fui indicada ao Grammy Latino quatro vezes e eu fico muito contente”, celebra.

Apesar de estar sob o guarda-chuva da MPB, Joyce prefere outra nomenclatura. “Faço MCB, que é a Música Criativa Brasileira”, conceitua, contrapondo não se prender a amarras de gênero, arranjo, temática. Tanto que ela flerta até com o sertanejo (a exemplo da música Ave Maria Serena). “Prefiro chamar música caipira, porque se fala sertanejo já se pensa logo naquelas duplas bancadas pelo agronegócio e que cantam letras que não dizem nada, só falam em beber, encher a cara”, critica. Para a compositora, a música de massa do País perde pela repetição de fórmulas. “A música é pensada só para lotar arenas e o povo ficar pulando. Tanto faz se é sertanejo, se é pagode, se é funk. É música para não pensar”, diz.

A partir da idas e vindas mundo afora, Joyce avalia que, com “a falta de música criativa”, a cultura brasileira tem desperdiçando espaço. “O Brasil está perdendo uma oportunidade gigantesca. Tem gente no mundo inteiro que aprende português por conta da música brasileira e aí depois vai procurar o filme, a literatura”, analisa. Disposta a seguir compondo, cantando e gravando, a artista segue fiel às suas propostas, mesmo que isso chegue a um público reduzido no País. “As crianças e os adolescentes não sabem quase nada do tesouro que é nossa cultura. A música criativa vive numa espécie de clandestinidade”, sustenta.

“Temos geração de velhas malucas”
Além de incluir todo o repertório do debut de 1968, o disco Joyce Moreno – 50 traz o single Velha Maluca, composição inédita da carioca. “A música é um aceno para o tema do envelhecimento da mulher e para um futuro próximo: porque é o que todas seremos, temos uma linda geração de velhas malucas no País e eu acho isso maravilhoso”, se diverte a cantora. Ao longo dos 70 anos de vida, Joyce afirma ter visto mudança radical de muitos conceitos sociais. “Nós, a geração que cresceu comigo, quebramos uma série de paradigmas e esse da velhice é mais um que está sendo quebrado. As mulheres estão lutando contra essa escravidão da beleza”, completa.

A obra comemorativa, lançada pela Biscoito Fino, traz ainda composições de nomes como Ruy Guerra, Paulinho da Viola, Jards Macalé, Caetano Veloso e Francis Hime. “É um trabalho de uma menina, de uma pessoa ainda imatura, verde no seu ofício, mas as canções eu sempre achei muito boas. Eu quis regravar esse disco com as aptidões que eu consegui reunir ao longo desses 50 anos, com tudo que eu aprendi”, finaliza.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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