Fabiana Cozza presta sua homenagem a Ivone Lara em excelente disco

Para quem quer se estabelecer no meio musical, não há patrimônio melhor a ser construído do que um repertório. Talento muito com repertório pouco é caminho árduo e digno. Talento pouco e repertório certeiro é caminho lucrativo, quando bem cuidado. Tem compositor com dois ou três verdadeiros sucessos de massa capaz de se manter trabalhando por décadas, apenas administrando esse hectare. Agora imagine quem tem lavouras de clássicos, daqueles que basta tocar os primeiros acordes que todo mundo já se arrepia e sai cantando junto. É essa segunda categoria de artista que está sendo celebrada em quatro tributos recentes. Para Roberto Carlos, Tito Madi, Vinicius de Moraes e Ivone Lara, repertório, definitivamente, não é problema.

Se até os anos 1990, Roberto Carlos era um ídolo ultrapassado que parecia congelado num especial de fim de ano da Rede Globo, bastou Maria Bethânia gravar um álbum com suas canções para que o rei voltasse a chamar a atenção da plebe. Dali em diante, a lista de homenagens a RC e seu parceiro Erasmo inclui súditos como Cauby Peixoto, Teresa Cristina, Roberta Miranda, Lulu Santos, Angela Maria e outros. O mais novo artista a se incluir nesse séquito é Nando Reis, que acaba de lançar Eu Não Sou Nenhum Roberto, mas às Vezes Chego Perto.

O paulistano, que já demonstra sua proximidade com a obra do homenageado desde os tempos de Titãs, regravou 12 músicas de Roberto, raramente fugindo das ideias propostas no original. Sim, há algumas surpresas no disco. Algumas até dispensáveis (como uma versão de Nossa Senhora com a letra levada só no “na na na na na”, uma vez que Nando é ateu). Mas é interessante a versão à la Ennio Morricone de A Guerra dos Meninos, com a letra declamada na voz longeva de Jorge Mautner – mais uma vez, Nando fica com “na na na na na”.

Fora essas, raro é quando Eu Não Sou Nenhum Roberto, mas às Vezes Chego Perto não soa como um simples cover.  De modo geral, projetos como esse fogem do lugar comum quando o repertório surpreende na seleção ou nos arranjos. No caso deste lançamento, não há surpresa em nenhum dos dois aspectos. A seleção até tenta ao trocar os megassucessos do rei por joias de menor quilate como Vivendo Por Viver, Me Conte Sua História, Procura-se e até Alô. No quesito arranjos, palmas para Nando Reis que está cantando docemente, sem excessos e cheio de emoção. Fora isso, é um disco de baladas arrasadoras, que segue a melancolia do homenageado, sem querer mexer muito.

Excesso de zelo ao original é o que também acontece em Mart’nália canta Vinicius de Moraes. O lançamento da Biscoito Fino passeia por muitos clássicos que o Poetinha fez ao lado de parceiros tão geniais quanto ele. Gente preciosa como Baden Powell, Carlos Lyra, Tom Jobim e Toquinho, que comparece com voz e violão em Tarde em Itapoã. Tirando Deixa e Um Pouco Mais de Consideração, tudo no disco já ganhou inúmeras regravações e é conhecido por qualquer um que conheça a obra de Vinicius.

Na verdade, o mais curioso em Mart’nália canta Vinicius de Moraes é que não se trata de um disco de samba puro, nem muito menos de bossa nova. Cercado por arranjos de Arthur Maia e Celso Fonseca, esses elementos aparecem num disco de alma pop e Minha Namorada é um bom exemplo disso. Neste tributo, tudo é bem marcado, sem muito espaço para espontaneidade. Apesar de isso ser o oposto do que é a obra de Vinicius, é ele quem abre a homenagem com uma gravação de Samba da Benção. Daí em diante, são 13 versões bem radiofônicas de Sabe Você, Onde Anda Você, Canto de Ossanha e outras. O disco conta ainda com adesões de Carla Bruni, na versão bilíngue de Insensatez, e Maria Bethânia, recitando o Soneto do Corifeu em Eu Sei que Vou te Amar.

Também é pautada no respeito que Nana Caymmi anuncia, como último disco da carreira, uma homenagem a Tito Madi. Para quem não conhece o personagem, o cantor, compositor e pianista Chauki Maddi (1929-2018) é um dos grandes nomes da música romântica no Brasil, cujo jeito de cantar influenciou nomes como João Gilberto, Roberto Carlos e Milton Nascimento. Autor de joias do samba-canção, sua obra cai como luva na voz doída e serena de Nana, sua fã incondicional. Na zona de conforto proporcionada pela produção de José Milton e pelos arranjos de Cristóvão Bastos e Dori Caymmi, só resta à intérprete abrir a boca e deixar sair canções como Cansei de Ilusões, Chove lá Fora, Não diga não e Balanço Zona Sul.

Intérprete de altíssima qualidade, Nana Caymmi tem uma emoção natural impressa em tudo que canta. Raramente ela foge do estilo melancólico e apaixonado que faz tão bem. E quando ela encontra um repertório à altura desse estilo, é difícil errar. É o que acontece em Nana Caymmi Canta Tito Madi (Biscoito Fino), onde tudo parece familiar e belo. É diferente do que acontece em Canto da Noite na Boca do Vento (Biscoito Fino), disco em que Fabiana Cozza canta os sambas eternos de Ivone Lara (1922-2018). Pra quem não ligou o nome à pessoa, Cozza é a cantora paulista escolhida para viver esta dama do samba num espetáculo de teatro. No entanto, ela sofreu uma chuva de críticas por ser branca demais para o papel.

Os críticos tanto fizeram que Fabiana desistiu de atuar, mas não de homenagear uma das compositoras mais importantes do Brasil. Canto da Noite da Boca do Vento é sublime, com arranjos econômicos e repertório tão imponente quanto a voz da intérprete de 43 anos. Um cavaco aqui, um sopro ali, percussão baixinha e Cozza vai moldando canções cheias de poesia, delicadeza e paixão. Enredo do Meu Samba, por exemplo, é lavada só ao violão – esplêndido de Alessandro Penezzi – até que entram uns detalhes de percussão. O mesmo acontece em Alguém me Avisou, que conta ainda com a voz de Maria Bethânia – que fez bastante sucesso com a gravação deste samba no álbum Talismã (1980).

Outro convidado de Canto da Noite da Boca do Vento é Péricles (ex-Exaltasamba), que divide Adeus Timidez, composição dos anos 1980 de Ivone Lara com então iniciante Arlindo Cruz. E tem o grande Nailor Proveta, colocando seu saxofone a serviço de A Dama Dourada. Composta por Herminío Bello de Carvalho e Vidal Assis, a pedido de Fabiana Cozza, esta é a única faixa do álbum que não é de autoria da homenageada, mas uma celebração a ela. Ao todo, são 14 faixas, incluindo um pot-pourri, que engrandecem esta dama do samba com respeito e dignidade. Dona Ivone Lara não merece menos.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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