Uma história, acontecida em 1962, ajuda a compreender quem era João Gilberto em sua essência. Em Nova York, onde um grupo de músicos iria apresentar a bossa nova para os EUA, ele saiu para comprar um chapéu para usar no lendário show do Carnegie Hall. Acompanhado de Roberto Menescal, eles andaram por horas, visitaram muitas lojas e viram muitos chapéus. Muitos mesmo. João provava e dizia que estava pequeno, ou grande, ou que a cor não agradava, ou que o formato não era ideal. Até que, depois do vendedor botar seu estoque abaixo, João se encantou por determinado modelo, não fosse um detalhe: havia uma pequena pena pregada no tal chapéu. Aquele mínimo detalhe decepcionou o “pai da bossa nova”. O vendedor, já exausto, deu como solução retirar a pena ali na hora e pronto. “Mas ele foi feito pra ter essa peninha”, argumentou o cantor que foi embora sem levar nada.

Com ele era assim. O perfeito ou nada. O teatro é um espetáculo da arquitetura, mas tem problemas de acústica? Sinto muito, não vai ter show. Garçons passando, sons de talher ou gelo batendo em copos de vidro?! Nem pensar. Plateia conversando, pedindo música? Por favor, não. Para o dono de um ouvido absoluto, aquele ruído insistente saindo da caixa de som é algo como o estrondo de um 747 levantando voo. E João tinha essa capacidade, tanto que podia apontar um único violino desafinado em meio a uma orquestra. Se os incomodados é que devem se retirar, ele já se retirou várias vezes do palco por achar que não tinha condições técnicas de oferecer ao público aquilo pelo qual pagaram: o perfeito absoluto.

Claro que “perfeito absoluto” soa como exagero, mas, se não foi o que criou, foi o que João Gilberto mais buscou ao longo da vida. Era insistente até o último grau e perseguia de forma incansável o som mais puro que conseguisse tirar da garganta e do violão. E ambos tinham que soar no volume e limpidez ideal para que fossem compreendidos. Um não precisava competir com o outro, mas trabalhar juntos até que formassem um único som. Suavidade, precisão e harmonia, essa era a senha para compreender sua música. Cada nota no seu lugar, emitida no volume correto. Quando tudo estava na temperatura ideal, era impossível não se deixar levar pela magia daqueles sons que saiam de um lugar muito íntimo.

Ou melhor, era possível sim. Passado o boom da bossa nova, anos depois dos lançamentos de Chega de Saudade (1959) e Getz/Gilberto (1964), suas exigências foram ganhando ares folclóricos e não faltou quem lhe chamasse de chato. Casos emblemáticos ganharam o mundo, como a inesquecível inauguração do Credicard Hall, em 1999, onde João dividiu com Caetano Veloso algumas canções e um festival de constrangimentos. “Vaia de bêbado não vale”, irritou-se diante da manifestação igualmente mal educada da plateia. Para ele, o ar-condicionado estava muito frio (reclamação comum entre muitos músicos em muitos lugares) e que havia um eco atrapalhando suas tão preciosas pausas. Segundo matéria publicada na época pela IstoÉ, o eco era um fato, músico presentes na plateia perceberam (principalmente quem estava mais à frente) e, pouco tempo depois, a casa passou pela sua primeira reforma na acústica. Cinco anos depois, no Carnegie Hall, ele também reclamou do som e deixou o palco até que tudo fosse ajustado. Os problemas técnicos foram resolvidos e ele voltou para encerrar uma apresentação que foi bastante elogiada. As exigências também incluíam o insubstituível AKG-C414, modelo de microfone austríaco que ele fazia questão de usar no palco e nos estúdios.

A busca pelo som perfeito se estendia ao discos, o que explica o processo milionário que ele moveu contra a EMI, gravadora que detinha os direitos dos seus primeiros discos – Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961) – e reuniu todos na coletânea O Mito (1988). Segundo João e pessoas próximas a ele, a remasterização alterou volumes, tons e a qualidade de sua voz. Mais de 20 anos depois, o cantor venceu o processo e exigiu as fitas masters dos discos, um pote de ouro que ele, supostamente, guardava em casa sem os devidos cuidados.

Isolado no mundo particular que criou, João Gilberto morreu aos 88 anos deixando um legado inestimável para a música do mundo. O reconhecimento veio de grandes gênios, como Eric Clapton, Gerry Mulligan, Frank Sinatra, Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan, entre muitos outros. Deixou também dívidas, processos e uma briga de família sobre como será dividido seu espólio. Até por problemas de má gestão de carreira, como ter que cancelar um show em cima da hora por conta do passaporte vencido, ele teve que responder. Avesso a entrevistas e sem muito contato com o mundo exterior, não é possível saber até que ponto esses problemas afetavam o mais importante intérprete da Garota de Ipanema. Mas é sabido que, em qualquer lugar do mundo onde alguém cante ou assovie um trecho que seja de Desafinado ou Chega de Saudade, ali João estará provando que valeu a pena a busca pelo perfeito absoluto.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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