Arnaldo Antunes não cria personagens. Mesmo que a cada novo trabalho ele se reinvente como roqueiro, sambista, baladeiro, funqueiro, ou um híbrido disso tudo. Ainda assim ele afirma que o ser elétrico de movimentos robóticos que sobe ao palco e o pensador de voz grave e tranquila que fala ao telefone fazem parte de um todo indivisível. “Não acho que é teatral. Sou muito avesso a essa coisa do personagem. O palco é como se fosse um templo, baixa um Arnaldo que talvez seja mais eu que eu mesmo. É um eu diferente, uma incorporação. É mais intenso, um estado diferente”, reflete.

Nessas reinvenções que ele montou uma banda elétrica para revisitar a Jovem Guarda no show Iê Iê Iê e outra pra interpretar seus sambas no recente RSTUVXZ, por exemplo. Agora um novo Arnaldo Antunes chega com O Real Resiste, disco de sonoridade acústica, ritmos lentos e letras emocionadas. O 18º disco do ex-titã, produzido por ele e Gabriel Leite, traz 10 composições inéditas gravadas num sítio-estúdio entre “árvores, banhos de lago, cavalos, cachorros, crianças e galinhas”, como aponta no material enviado à imprensa.

“Eu venho de um disco mais pesado com ritmos caraterísticos e quis fazer uma mudança. O repertório é o mais próximo possível da forma como elas (as canções) nasceram. Remete à fase do Qualquer (2006), um canto mais sereno, mais calmo, com uma formação mais enxuta”, detalha Arnaldo que justifica a mudança de sonoridade com o seu “desejo mudança, inquietação constante por conta do sabor das coisas que vinha compondo”.

Assim como em Qualquer, O Real Resiste conta com Daniel Jobim no piano, Cézar Mendes e Chico Salem no violão, Dadi Carvalho na guitarra e outros instrumentos. Os vocais ficaram com membros da família Antunes. A filha Celeste compartilha os sentimentos paternais de Na Barriga do Vento e a esposa Márcia Xavier faz um carinho na mântrica Luar Arder. A semelhança de sonoridade entre os dois discos, apesar dos 14 anos de distância, segundo Arnaldo, não foi proposital, embora seja evidente. “Na verdade, só me dei conta quando estava no processo. Eu estou num período de querer menos, querer fazer mais tranquilo, mais lento”, completa.

E se menos é mais em O Real Resiste, não é de se estranhar que o disco abra com uma homenagem a João Gilberto, “que dedica todo empenho e amor ao seu engenho para arejar os quartos da canção”, como a diz a letra escrita logo que o mestre da bossa nova morreu em julho de 2019. “Não conheci pessoalmente, mas desde muito jovem o conheci através do meu irmão que tinha os discos. Quando ouvi João pela primeira vez logo fez sentido por que tem um frescor. Quem ouve logo se impressiona e de certa maneira isso vai se manter por que é muito singular”, afirma Arnaldo.

Para o compositor de 59 anos, essa tranquilidade do disco é mais maturidade e experiência de vida do que olhos fechados para o que incomoda. Tanto que a faixa que dá nome a O Real Resiste, lançada como single em novembro do ano passado, aponta contra uma série de lástimas que se espalham por tantas sociedades. São desgraças como autoritarismo, fanatismo, homofobia, neonazismo e mula sem cabeça. “Na verdade, o pensamento é ‘espero que o real resista’”, ri o compositor. “O espaço da arte é de liberdade, é onde podemos exercitar nossa utopia. Essa música foi feita num estado de espanto com o que está acontecendo na política do Brasil. Já é espantoso a gente ver as pessoas defendendo tortura, ditadura, preconceito. E é mais curioso ver isso se tornar um projeto de governo”, completa ele que dedica outras duas faixas à questão indígena.

O próximo passo é levar O Real Resiste para a estrada, quando o inclassificável Arnaldo exercitará um novo formato. O show inédito, previsto para estrear em abril, vai trazer cenário e projeções de Márcia Xavier, poemas recitados e canções de várias épocas acompanhadas apenas pelo piano virtuoso do pernambucano Vitor Araújo. “O show RSTUVXZ com dois (músicos) é diferente, por que os dois funcionam como uma banda toda. Esse é um formato inédito, mais enxuto. Fizemos uma seleção de outras músicas que se adequam a esse formato. É uma experiência inédita de intercalar com poemas. Só fiz isso algumas vezes em performances”, empolga-se o artista que já começou os ensaios neste mês.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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