Foto: Ana Alexandrino/ Divulgação

Conheci o som de Letícia Novaes em 2010, quando ela integrava o duo Letuce, dividido com Lucas Vasconcellos. O disco de estreia deles, Plano de Fuga para cima dos Outros e de Mim, chegou naquele ano trazendo um som estranho, curioso e super  bem pensado. A voz de Letícia tinha algo de debochada, cômica e super espontânea. E esse foi o ponto que fez ouvir e reouvir esse disco em momentos pontuais dali pra frente –  ainda hoje, ele está aqui na estante. Passei batido no segundo álbum, Manja Perene (2012), e recebi o terceiro e último, Estilhaça (2015), sem dar muita importância, confesso. Mas ele ficou aqui guardado também.

Não vou saber exatamente quando Letícia se transformou em Letrux, nem quando eu conheci essa persona-heterônima que conservou aquilo que tanto me agradava em Letícia. O deboche, a interpretação livre de amarras, e a vontade de colocar o sentimento à frente da afinação – não, não estou dizendo que ela é desafinada. Há muita vontade de fazer música em Letrux e, mais ainda, que essa música seja reflexo de um pensamento, um sentimento coerente e potente.

Isso volta a ficar expresso nas 13 faixas de Aos Prantos, álbum que chegou três anos depois da estreia solo Em Noite de Climão. O novo álbum segue a proposta de misturar sons eletrônicos com guitarras e batidas orgânicas. O som é dançante, até quando fala de dramas pessoais, relações mal resolvidas e perdas. Tem algo The Cure, New Order e Maysa. E tem Letícia dando muitos passos adiante nas próprias ideias. Aos Prantos tem toques de samba, blues, rock, chanson, psicodelia e aquela certeza “faça você mesmo” que o punk tão bem nos ensinou.

Guardada “na serra”, fugindo do coronavirus, Letrux conversou com o DISCOGRAFIA sobre esse tempo de quarentena e o novo disco, que foi lançado em março. “Tenho lido, cozinhado, feito nada, surtado, chorado, gargalhado com filmes, memes, ficado preocupada. Tem sido uma montanha russa emocional”, conta ela sobre esse tempo de reclusão. Confira.

DISCOGRAFIA – Queria que você fizesse a sua crítica ao novo disco. Em que pontos ele se assemelha ao Noite de Climão, em que pontos ele é diferente.
Letrux – Não sei fazer críticas dos meus trabalhos, exatamente. Consigo sentir que é um evolução de um processo meu, enquanto ser humana e com a banda, musicalmente. Estamos juntos há três anos, fomos construindo sons, encontros sonoros, fomos brincando mais de olhos fechados, confiando. E eu, enquanto compositora, continuo com minhas observações, inquietações. Não sei onde assemelha e onde não, e nem gosto de pensar assim. Eu crio sem olhar pra trás, mas sabendo que o passado tem seu estofo, sua importância.

DISCOGRAFIA – Queria que você contasse como foi a confecção desse trabalho, a troca de ideias com os produtores, a experiência de estúdio, o tempo que levou de gravação.
Letrux – O tempo de estúdio foi até rápido, a pré-produção é que levou mais tempo. Compor, sozinha, em dupla, trio ou quarteto, tudo isso foi orquestrado, editado, refletido. Depois dos ensaios, a gravação no estúdio foi fluída. Natália Carrera e Arthur Braganti que produziram de novo. Confio neles cegamente. E na banda também, todos muito empenhados em suas excelências musicais. Gostamos de estar juntos, tocando, então o estúdio fluiu lindamente.

Leia crítica do disco Aos Prantos escrita pela jornalista Camila Holanda

DISCOGRAFIA – Aos Prantos conta com duas convidadas, Luisa Lovefoxx e Liniker, com quem você dividiu o recente Acorda Amor. Queria que você falasse da sua relação com elas e desse encontro no novo disco.
Letrux – Sou apaixonada pelas duas. Lovefoxxx, desde início dos anos 2000, com CSS e Liniker desde que sua banda estourou. Tive a sorte de ver a volta do CSS no Popload, e aí nos encontramos depois e foi amor à primeira vista. Luisa é muito importante pra minha geração, uma voz, uma presença única, genuína até o talo. Quando a convidei pra gravar Fora da foda e ela topou, fiquei muito feliz. A voz dela é a cereja do bolo. Liniker e eu participamos juntas do projeto Acorda Amor, então estreitamos uma amizade e admiração. Não tem ninguém igual à ela, aquilo ali é força da natureza. Sente o drama precisava dessa voz dela, fenomenal.

DISCOGRAFIA – Aos Prantos tem música em inglês e espanhol. Você tem planos de investir mais no mercado internacional? Que espaço você vê para sua música fora do Brasil?
Letrux – Sou filha de uma professora de francês. Minha mãe sempre achou importante fazer cursos de línguas, e eu também, com todo meu interesse musical e poético, amo ler em outras línguas, cantar também. Já fiz shows fora do País, em Portugal, e com Letuce cheguei a tocar em Londres e Paris. Acho divertida a ideia, mas não tenho nenhum plano de investir agora. Mas mais pra frente seria astral. Em Portugal as pessoas amaram nosso show, não há barreiras da língua, mas acredito que a sonoridade da banda leve uma plateia que não fala português para lugares emocionantes também.

DISCOGRAFIA – Muitas das suas composições falam em primeira pessoa e você se coloca como uma mulher livre de agir, pensar e sentir. Queria que você falasse dos olhares interno e externo dessas canções. Em que ponto suas músicas são reflexos de experiências pessoais e em que ponto elas refletem experiências de mulheres que fazem parte do seu mundo?
Letrux – Não existe um ponto exato, na hora da criação acaba que tudo se funde e uma experiência que tive há sete anos se encontra com um desabafo que uma amiga me fez no WhatsApp. São cursos de rios, que vão se encontrando às vezes e desembocam no mar. Empresto muito de mim, mas sou ultra observadora, quase voyeur, tenho visão periférica, percebo tudo, vou sentindo e anotando, deixando fluir, até que um dia, vem uma necessidade de transformar algo e aí parto pra composição.

DISCOGRAFIA – Você se tornou uma das artistas mais comentadas nos últimos anos, tanto pela música em si quanto pelas apresentações que são verdadeiros happenings. Como viu essa resposta ao trabalho solo?
Letrux – Fico honrada e emocionada, me entrego em todos shows, no maior festival até show pequeno em cidade do inferior. Pra mim não existe cólica, stress, nada. Na hora do palco reúno minhas forças, minha verdade, minhas mentiras também (por que não?) e me lanço naquele espaço. Portanto, é muito bom saber que as pessoas também sentem minha entrega, fico feliz com isso.

DISCOGRAFIA – Uma marca das suas apresentações é um forte discurso político. Você ainda vê espaço para um artista que prefere não se posicionar politicamente? De alguma forma, você se preocupa com uma parcela do seu público que não se alinha ao seu pensamento político e poderia se sentir incomodada?
Letrux – Quem não se alinha com meu discurso político acho que nem vai ao show. Sinto total conexão política com meu público que se manifesta nas redes sociais e nos shows. Artistas que não se posicionam tem medo, talvez. Eu não tenho medo. Tenho alguns, mas de me manifestar não. Preciso. Artistas que eu amo, admiro, cresci adorando, se manifestam politicamente. Bem raro eu gostar de um artista isentão. A maioria tem uma música que não mexe com meus brios.

DISCOGRAFIA – Uma pessoa que tornou-se cada vez mais próxima de você foi Marina Lima. Ela está no primeiro disco do Letuce, como compositora, e no seu primeiro disco solo, como presença real. Ela fala de você, dividiu o palco com você e Fora da Foda lembra a sonoridade elegante da Marina dos anos 1990. Queria que você falasse dessa influência na sua vida, de como ela chegou e se instalou na sua história.
Letrux – Eu e Marina nos conhecemos via MySpace. Mandei mensagem pra ela e ela respondeu, fiquei tremendo e muito feliz. Gravei Acontecimentos no primeiro disco de Letuce, cheguei a cantar essa música com ela, num show dela em 2013, e aí em 2017 ela me chamou para fazer uma letra com ela. Foi das coisas mais incríveis do mundo. Fizemos Mãe gentil, que está no último disco dela. E aí, como quem não quer nada, fiz outro convite pra ela cantar Puro Disfarce comigo no Climão. Ela topou, e, desde então, participamos uma no show da outra, sempre com muita admiração, carinho e amor. Marina é musa absoluta.

DISCOGRAFIA – A Letícia Novaes, do Letuce, é muito diferente da Letrux? Em que elas são diferentes e em que são iguais?
Letrux – Acho que são evoluções normais e reais. Meus amigos próximos que viram show da minha primeira banda, Letícios, enxergam toda a minha trajetória. Já tinha coisa lá. De Letrux. Eu sempre vou criar personas. Apelidos, máscaras, sagas, trajetórias. Musicalmente e dramaticamente, isso me atrai. Sou fã de David Bowie. Claro que Letuce era mais inocente porque eu era, fui adquirindo casca, languidez e trouxe isso pro meu trabalho. São evoluções da minha personalidade, que se refletem nas minhas composições e no meu jeito de cantar, estar no palco.

DISCOGRAFIA – Foram três discos com o Letuce e o Lucas Vasconcellos segue como um parceiro na sua carreira solo. Como você se relaciona com o repertório da sua antiga banda? Esse repertório ainda reflete quem você é hoje? No disco Estilhaça, por exemplo, você diz “toda noite eu arranco meu coração, de manhã ele volta a crescer”. Com a Letrux também é assim?
Letrux – Sempre vou querer compor com Lucas, amo a música que fizemos para o Aos Prantos: Esse filme que passou foi bom. Eu não canto mais repertório de Letuce. Tocamos num show que Lucas participou, mas a gente não toca no nosso show. Não achava que tinha a ver com Climão e não sei também se vai ter a ver com Aos Prantos. Eu amo os três discos que lancei, que bom que eles existem, mas não cabem na minha boca agora. Acho que meu coração sempre cresce, tipo rabo de lagartixa mesmo. Arrancam e eu sigo. Sempre.

DISCOGRAFIA – O coronavirus tem causado um impacto grande no mercado da arte, que já é frágil por uma série de questões. No caso da música, muitos shows e eventos foram cancelados. De que forma isso afetou você?
Letrux – Me afetou em cheio, como todo o planeta. Seis meses que não existirão. Nada de cachês, turnês para fora, festivais, nada. Zero reais. É preocupante. Alarmante. Não sei como vai ser.

DISCOGRAFIA – Como você tem atravessado esse período de quarentena? O que tem feito para ocupar o tempo?
Letrux – Felizmente, estou na serra, portanto consigo pegar sol, ver a natureza, ter contato com a terra e a água, muito importante pra mim. Tenho lido, cozinhado, feito nada, surtado, chorado, gargalhado com filmes, memes, ficado preocupada. Tem sido uma montanha russa emocional.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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