Foto: divulgação

Texto escrito por Mimi Rocha, músico e produtor

Na primeira vez em que ouvi Na Hora do Almoço, eu ainda não sabia fazer acordes no violão. Tocava um violão só nas cordas graves o riff de Satisfaction (Rolling Stones) e de Iron Man (Black Sabbath) que aprendi de ouvido. Um tempinho depois, já com um violão devidamente afinado pelo cunhado e amigo Helder Maia, descobri aqueles quatro acordes que são tão representativos da música cearense que se fazia nos anos 1970 (Ré, Ré com baixo em Dó, Sol com baixo em Si e Sol menor com baixo em si bemol), e que vêm do barroco de J.S. Bach – na mão dos Beatles, esses acordes nos trouxeram Dear Prudence; no Blind Faith de Eric Clapton,  trouxeram Can’t find my way home; com Ednardo, um trecho de Beira-mar e outras; Tom Jobim, Águas de Março; e Fagner citou no final de Canteiros. Só pra lembrar algumas.

Belchior construiu sua obra na cola dessas influências, com um material composicional limitado, mas com dois diferenciais: letras marcantes, com toques de Bob Dylan, John Lennon, Edgar Allan Poe, poesia concreta, cordel, imagens cotidianas, e na parte musical se cercou de grandes produtores e músicos, dos quais destaco Mazolla, José Roberto Bertami (da banda Azimuth), Rick Ferreira (que trouxe a linguagem da guitarra country americana junto com as violas de cantadores), que souberam lapidar as músicas dele sem tirar o foco da mensagem que passava.

Aliado a isso, Bel sempre teve o visual do latin lover, com cachimbo, bigode, chegando a ser eleito o homem mais sexy do ano por uma revista masculina da época.

Destaco na sua obra a tríade de discos Alucinação, Coração SelvagemEra uma vez o homem e seu tempo, que mais parecem uma coletânea de “greatest hits”. Menção honrosa deve ser dada ao primeiro, Mote e Glosa, que é meio tropicalista; Todos os sentidos; e Objeto Direto, que contém a música que mais gosto dele Ipê.

Minha experiência com Belchior começou num show em Russas, que fizemos sem ensaio em meados dos anos 1990. Ficamos hospedados no sítio da mãe do cantor Sávio Leão, e teve uma noitada de violão e vinho após o show. Era muito bacana conversar com Belchior, sempre muito cordial e atencioso, e me chamava de Dom Mimi.

No começo dos anos 2000 fui chamado pra fazer uns shows com ele num formato mais acústico, e viajamos pelo interior do Ceará também nesse esquema sem ensaio, só um encontro na piscina do hotel pra ver o roteiro etc… Mais uma pausa e mais um convite, mas dessa vez consegui ensaiar um show dele com uma banda que incluía Tito Freitas no teclado, Luís Miguel no baixo, Adriano Azevedo na bateria e Márcio Resende no sax. Fizemos um show antológico na Taíba, durante o Festival do Escargot (no YouTube tem um vídeo bem tosco feito por um rapaz que parecia alcoolizado. Mas dá pra ver um trecho de uma homenagem a Raul Seixas).

Mais algumas viagens pelo Brasil no formato acústico, mais conversas boas no camarim sobre poesia, cinema, Dante Alighieri, Rod Steward, histórias de gravação dos discos e mais vinho. Gravamos o DVD Nomes do Nordeste no CCBNB, com as inclusões de Italo Almeida (hoje Italo Poeta) no teclado e mais Miguel e Adriano.

Aí começou a ficar estranho… Nos últimos shows que fizemos, não tínhamos mais acesso ao Bel. Ele não fazia nenhuma refeição conosco, não ia passar o som, não recebia mais os fãs nem autoridades após o show. O último show que fiz foi em Porto Alegre. Após isso, só a notícia no Fantástico de seu sumiço.

Em 2010 comecei a frequentar um bar ali na bairro de Fátima, que o dono, o “Zé Maria”, era a cara dele e no fim da noite costumava uma canja só com músicas do Belchior. O bar virou cult, principalmente aos domingos, sob o comando do cantor Paulo Façanha, com várias canjas de músicos locais e outros que estavam de passagem pela Cidade. Levei o Zé Maria pra um show que dirigi em homenagem ao Belchior na primeira Maloca Dragão. Junto com vários outros artistas, como Nayra Costa, Karina Buhr, Jonatta Doll, lotamos a praça de jovens que estavam se identificando com essas canções atemporais.

Eu soube da morte do Belchior através de um telefonema da jornalista Camila Holanda (O POVO) que me ligou pra pedir uma declaração. Eu estava ilhado em Flecheiras, pois a ponte tinha caído e não tive como atender ao pedido do João Wilson (Dragão do Mar) para coordenar um show em homenagem a ele naquele noite no Dragão. Consegui ainda chegar a tempo de tocar junto com alguns cantores na missa de corpo presente realizada no Anfiteatro do Dragão.

Hoje, pensando em tudo isso, fica a alegria do convívio e de poder desfrutar da incrível obra desse “cordial brasileiro”.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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