Já vai quase o fim da gravação de Feira de Mangaio quando Clara Nunes não se contém e solta: “Êta sanfoneiro da gota serena”. O sanfoneiro em questão era Sivuca, autor daquele que é um dos mais reconhecíveis riffs da MPB. Clássico absoluto entre os mestres do acordeom, a composição revela muito sobre seu autor. Começa que Feira de mangaio é uma parceria com Glória Gadelha, com quem Sivuca dividiu uma vida e uma carreira. Outro detalhe é que esse forró nasceu nos Estados Unidos da América, num momento em que casal conversava sobre do que sentiam saudades do Brasil. E levar a tradição nacional para o exterior – bem como trazer de lá pra cá – está entre as grandes contribuições daquele senhor talhado em tons de branco.

Foi no 26 de maio de 1930 que nasceu Sivuca. Ou melhor, Severino Dias de Oliveira, filho de gente simples do município paraibano de Itabaiana. Sivuca, mesmo, só foi nascer mais adiante, quando aquele menino albino já, ainda adolescente, já trabalhava em rádios tocando acordeom. “Ele começou a tocar com um (acordeom) 8 baixos e, como era albino, não podia brincar na rua e ficava em casa estudando”, conta o músico Adelson Viana, que, assim como Sivuca, é arranjador e pianista. No entanto, ambos acabam sendo mais reconhecidos pelo trabalho com a

Capa do disco que registra o inesquecível encontro de Rosinha de Valença com Sivuca, no projeto Seis e Meia (Foto: Divulgação)

sanfona. “A sanfona tem esse poder de liderar por que é um instrumento mais expressivo, marcante”, supõe.

Autodidata, Sivuca nem tinha 10 anos quando já tocava em bailes, feiras e festas de sua cidade. Por volta dos 15, da Paraíba foi pra Pernambuco, onde participou de regionais e trabalhou em trilhas de radionovelas. Seu próximo destino foi São Paulo, a convite da cantora Carmélia Alves que o queria no seu próximo disco. E foi dela a primeira gravação de Adeus Maria Fulô, parceria dele com Humberto Teixeira. Antes, Sivuca parou para estudar teoria musical e harmonia com César Guerra Peixe.

Esse contato com o maestro petropolitano talvez seja a senha para compreender a grandiosidade de Sivuca. Sua música tinha o barro do interior nordestino e as luzes dos salões elegantes. Ele era o sanfoneiro do resfolego ágil e o admirador de Johann Sebastian Bach – de quem adaptou muitas peças para a sanfona. De São Paulo, ele ganhou o mundo tornando-se um dos artistas brasileiros mais reconhecidos em espetáculos dos mais variados gostos. Sua viagem para a Europa, inclusive, foi integrando uma comitiva de músicos brasileiros que se apresentava com o apoio da Lei Humberto Teixeira, que divulgava nosso patrimônio cultural no exterior. Batizado como “Os Brasileiros”, a comitiva contava ainda com o Trio Irakitan nos vocais, Abel Ferreira nos sopros, Dimas e Pernambuco na percussão, e Guio de Moraes na direção artística, e chegaram a gravar um disco que resumia as apresentações que passaram por Londres, Bruxelas e Paris.

Dessa viagem, em meados dos anos 1950, até o fim da vida, em 14 de dezembro de 2006, vitimado por um câncer, Sivuca visitaria muitos países, moraria em alguns deles e encontraria algumas das mais importantes personalidades da música moderna. Miriam Makeba, Harry Belafonte, Nelson Ridle, Julie Andrews, Paul Simon, Bete Midler, Hugh Masakela, Astrud Gilberto, Stanley Turrentine, Toots Thielemans, Oswaldinho, Airto Moreira, Flora Purim e Hermeto Pachoal só pra ficar numa lista modesta. Também é longa a lista de parceiros, como Chico Buarque, com quem compôs  sublime João e Maria.

“Ele teve contato com grandes maestros, arranjadores, cantores de sucesso. E teve uma temporada muito boa nos EUA, passou muitos anos lá, onde gravou um disco incrível, Live at the Village Gate. Lá, ele misturou música brasileira, tocou Baden Powell, composição dele, standard de jazz, revisitou compositores mais antigos, como o

Capa do disco do grupo “Os Brasileiros” do qual Sivuca fez parte em meados dos 1950 (Foto: Divulgação)

Caymmi, Moacir Santos e Ary Barroso, tocou com uma banda de americanos. Um clássico desse disco ficou o Ain’t no Sunshine, do Bill Withers, uma versão legal pra caramba”, aponta o guitarrista Mimi Rocha. “Essa fase é super bacana pra carreira dele. Pouca gente conhece, na verdade. Quem é mais aficionado com o trabalho dele como sanfoneiro, nordestino, brasileiro meio que não conhece muito desse lado dele de compositor e arranjador”, completa.

Da soul music ao baião a às valsas, choros, sambas, tudo passava por Sivuca. “Ele era especial por que era um músico completo. Quase tudo que passasse pela mão dele ele tocava. Não só a sanfona, como outros instrumentos. Além de tocar forró muito bem, ele adorava clássicos e lia muito. Era um cara muito positivo”, relembra o músico e produtor Lau Trajano, com quem Sivuca dividiu alguns palcos e doses de cachaça. “Ele era um contador de causo. A gente sentava pra papear e ele contava histórias de quando morou fora. Ele dizia que iria sentar a poeira e iria viver na terra dele. Ele não queria tocar mais depois de certo tempo”.

“Sivuca foi um extraordinário músico que elevou o nível da sanfona a um outro patamar. Transitou do popular ao erudito de uma forma extraordinária, e foi muito respeitado no exterior. Acho que, se hoje a gente pode subir num palco e tocar sanfona, deve-se muito a ele. Ele tem uma singularidade, uma particularidade que é indiscutível”, destaca Adelson Viana. “Sivuca estudou muito com violinistas e pegou uma técnica baseada no arco do violino. Ele percebia que o movimento do arco dava mais ou menos no tempo da abertura do fole. Ele sincronizava o manejo do violino com a abertura do fole e fazia isso com maestria. Era um músico preparado, ia aos limites do que o acordeom pode dar”.

Para ver:
Live At Berns Salonger

Gravado em 1966, em Estocolmo, Suécia, o vídeo com cerca de 20 minutos traz a cantora sul-africana Miriam Makeba cantando acompanhada de Sivuca ao violão. Entre as canções, Chove Chuva, de Jorge Ben.

Matilda

No início dos anos 1970, o cantor e ator Harry Belafonte convidou Sivuca para integrar sua banda. Juntos, eles participaram de um especial de TV que contou com participação de Julie Andrews. Sivuca toca violão, sanfona e brinca com o elenco.

Feira de Mangaio

Talvez o maior sucesso de Sivuca, esse forró ganhou um clipe para a TV onde divide atenção com a saudosa Clara Nunes. A música fecha o disco Esperança, de 1979, que vendeu mais de 350 mil cópias.

Sveriges Radio 1969
https://www.youtube.com/watch?v=IfQgANPl6Wc

Nesse programa feito para a TV sueca em 1969, Sivuca abre o set com uma interpretação cheia de improvisos para Céu e mar (Johnny Alf) e segue com Arrastão (Edu Lobo/ Vinicius de Moraes) e outros clássicos da bossa nova.

Aproveita gente

Em 1984, Sivuca foi um dos convidados de Luiz Gonzaga num especial da TV Globo. Juntando ainda Doinguinhos e Oswaldinho, o programa transforma o estúdio numarraiá. Uma grande festa nordestina.

Para ouvir:
Live at the Village Gate
Gravado em 1975, o álbum traz uma apresentação de Sivuca num famoso clube de jazz de Nova York, acompanhado de um quinteto de músicos americanos. No repertório, tem sucesso próprio (Adeus Maria fulô), Ary Barroso (No rancho fundo) e uma curiosa versão de Ain’t no Sunshine, de Bill Withers.

Let’s vamos
De 1987, o disco é uma parceria de Sivuca com o duo de violonistas suecos Guitars Unlimited, formado por Peter Almqvist e Ulf Wakenius. O repertório vai de Moacir Santos (Coisa No 10) a Dominguinhos (Nipolitano). Glória Gadelha participa em Cheirinho de mulher.

Pau doido
Resultado de uma turnê pela Escandinávia e norte da Europa, esse álbum de 1992 tem homenagens a Tom Jobim (Um tom para Jobim) e Astor Piazzolla (Canção Piazzollada). O músico João Lyra participa tocando violão e na composição de Riacho seco, parceria com Maurício Carrilho.

Sivuca & Rosinha de Valença
De 1977, a gravação do projeto Seis e Meia, no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, rendeu um dos discos mais cultuados da música instrumental brasileira. É aqui que ele mostra ao público, pela primeira vez, sua Feira de mangaio. Ao lado do violão de Rosinha, Sivuca recria Asa branca e Lamento.

Cada um belisca um pouco
Lançado em 2004, o disco reúne mestres do acordeom: Sivuca, Oswaldinho e Dominguinhos, além de Waldonys, como convidado especial. No repertório, eles passeiam por sucessos acumulados em anos de carreira. Eu só quero um xodó, Baião, Adeus Maria Fulô e outras.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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