O compositor Paulo Vanzolini autor do clássico Ronda, após a gravação do programa Proposta da TV Cultura, que tinha na parte musical os ainda desconhecidos Ednardo, Belchior, Rodger Rogério e Teti, ao saber que eram nordestinos soltou o mote:

– Meu filho eu palmilhei aquele chão sagrado…

que viria a ser o título da canção de Rodger e Belchior Chão Sagrado, e também do primeiro disco solo da dupla Rodger e Teti.

A história do disco gravado em 1974, que passou despercebido em seu lançamento em 1975 (pela pífia divulgação), começou de forma inusitada quando o então produtor da RCA Osmar Zan (filho do sanfoneiro Mario Zan) fez um convite para a dupla gravar um disco com versões de músicas de Diana Ross, Marvin Gaye e de outra dupla italiana de sucesso da época para ser lançado no Japão.

Rodger estava de volta a Fortaleza devido a um problema de saúde e declinou da proposta indecente. Com isso, nasceu a dupla Jane e Herondy.

Mas, voltando ao disco, eles começaram a ensaiar no final de 1973, numa casa no Iguape para um show com músicas novas e jovens músicos na banda, com destaque para Manassés na guitarra e viola; Édson Tavora no acordeon; Murilo na bateria; Zé Milton no baixo e sanfona; Rui foi o baixista no disco. Eles fizeram um show no Teatro Universitário e outro em Recife, antes da trupe sair de carro até São Paulo. Teti foi depois quando a casa já estava arrumada.

O produtor Walter Silva, que batizou o “Pessoal Do Ceará” e produziu o histórico disco deles Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem, dirigiu o estúdio e fez a coordenação artística do Chão Sagrado, com o maestro Hareton Salvanini fazendo os arranjos de metais, madeiras e arregimentando grande nomes como Heraldo do Monte (violas), Roberto Sion (sax e flauta) e o violinista argentino Elias Yslon somando com a banda já ensaiada. As fotos da capa do disco são de Gerardo Barbosa, que já era conhecido pelas fotos do disco O Romance do Pavão Mysteriozo, de Ednardo.

O disco abre com o baião tropicalista Bye- Bye-Baião, parceria com Dedé Evangelista, que assim como Rodger, é físico e já tinha nos dado Falando da Vida, do disco do Pessoal. A letra mistura gerimum com leite em pó, mugunzá com dietil e menciona o satélite Sputnik, tudo isso embalado num baião já meio funkeado. Rodger canta e Teti faz o vocal.

Chão Sagrado vem em seguida com um resfolego de sanfona que depois vira um maracatu disfarçado. Os dois cantam juntos mas o tom, segundo Teti, podia ter sido mais baixo. Termina de novo com um baião na viola.

Risada do Diabo é outro baião do genial Petrúcio Maia, com Teti mais confortável no tom, ótimo arranjo, frases melódicas de sanfona, viola, flauta e suingue bacana.

O Lago é uma ária, segundo Rodger, influenciada pelo compositor russo Sergei Rachmaninoff. Tem letra do guru da turma Augusto Pontes. É a música mais lúdica e mais curta do disco, onde Rodger mostra seu talento com harmonia e melodia de alto nível. Teti tem muita delicadeza e beleza na interpretação.

O blues Beco da Noite já é uma querida entre a turma mais jovem, sendo interpretada frequentemente em shows. Ela começa quase “a capella” com Teti arriscando um tom meio Janis, seguida de um solo de guitarra blues flamenco do Manassés, depois um intermezzo de metais em contraponto à voz que finaliza a música sozinha.

Rodoviária é a minha preferida do disco. Começa uma balada com um sax meio desafinado que logo corrige. Entra Rodger cantando sobre uma harmonia modulante genial, até se estabelecer no primeiro refrão. De repente entra um violão meio Jorge Ben (segundo Rodger, quase não dava certo na gravação), em seguida cai num baião com um ótimo groove e vai finalizando num fade out (diminuição gradativa do volume). A letra incrível é do poeta sempre presente em clássicos cearenses Soares Brandão.

Fino Fio começa com flautas barrocas e cai num baião lento com harmonia bem original, ótimas intervenções de viola e flauta. Letra e música de Rodger. A cantora Nayra Costa interpreta essa em shows recentes.

O lado B começa com Fox-Lore um soul na onda Motown, com metais estilo James Brown, que Rodger diz não ter escutado na época, apesar de ter noção do sucesso dele. A letra de Dedé, que quase foi censurada na parte da canção de ninar “Carneirinho…”, que foi ideia de Augusto Pontes. Eram os anos de chumbo… Essa também é uma favorita de Daniel Groove e Nayra e está, vez por outra, no repertório deles. Rodger atualmente interpreta em shows com uma versão mais rocknroll.

Siá Mariquinha, de Luíz Assunção, é uma guarânia e a mais tradicional do disco, sendo bem curta, quase uma vinheta.

Coroação é mais uma com letra e música de Rodger, o único samba bossa do disco. Tem uma flauta bem desenhada, bom molho no piano e modula no estilo já característico dele. Amália é uma composição melódica e harmonicamente rebuscada com toques progressivos e barrocos no arranjo, uso do cravo e da viola, cordas e letra de Fausto Nilo.

Fausto também é letrista da clássica Retrato Marrom, que teve gravações de Fagner e Ney Matogrosso. O curioso desse tango abolerado é que talvez seja a única música popular que conheço no tom de Si Bemol menor e que tem uma modulação (mudar o tom da música) descendente, algo também inusitado em música. Teti se sai muito bem, já entrando com a voz junto ao violino de Yslon que traz o clima portenho tão característicos de uma tanguedia (casa de tango). Depois, do solo de guitarra do Mana, retorna a voz e a música acaba subitamente como um fim de noite num escuro bar…

Apesar de eu ter tocado desde os anos 1990 com Rodger e Teti em alguns shows onde Chão Sagrado e Retrato Marrom estavam no repertório, eu só vim a conhecer o disco em 2011 numa audição com os amigos Caio Napoleão, Valdo Siqueira e Henrique Bayma na sala de vinil do Cantinho do Frango. Depois de algumas cervejas e muitas repetições das músicas ficou no ar o porquê dessa obra tão genial não ter sido divulgada e tão pouca gente conhecer.

De lá pra cá, em 2014, a convite do Dragão do Mar, dirigi uma releitura do disco inteiro com os cantores Paulo Belim e Ilya, e a presença dos protagonistas Rodger e Teti. Também temos tocado nos shows recentes do Rodger algumas músicas do disco. Teti me confessou que sempre teve um trauma com a mixagem (que tem uma característica entre média e aguda) e alguns tons da músicas que cantou, mas que atualmente, com a boa aceitação pelas novas gerações de músicos, está mais relaxada e feliz com o resultado.

Rodger com seu jeito mais boa praça considera que o disco amadureceu bem, apesar de que ele queria a inclusão de mais umas duas músicas. Pra mim e pra muita gente que conheço, esses 32 minutos e cinquenta e dois segundos são uma obra-prima da nossa música e os coloco entre os cinco discos mais importantes já feito pela nossa turma.

Mimi Rocha é músico e produtor. Ele escreve nesse espaço quinzenalmente

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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