romance do pavão mysteriozo

Em 1976 a novela Saramandaia de Dias Gomes era sucesso inaugurando o “realismo fantástico” na dramaturgia televisiva brasileira. Eu era um moleque de 11 anos que gostava de dormir tarde (mesmo a contragosto dos pais) e ficava fascinado com os personagens bizarros. O coronel Zico Rosado põe formigas pelo nariz; Dona Redonda (Wilza Carla) explode de tanto comer; a sensual Marcina (Sônia Braga) provoca queimaduras com o calor do corpo; o professor Aristóbulo Camargo (Ary Fontoura) se transforma em lobisomem nas noites de quinta-feira. Além disso, sob a aparente corcunda, o pacato João Gibão esconde um par de asas.

Mas o que me chamava atenção mesmo era a música de abertura que falava de um pavão misterioso e tinha um ponteio de violão no início. A música em questão tinha sido lançada em 1974 sem muito alarde no disco O Romance do Pavão Mysteriozo, pela RCA como primeiro disco solo do cantor e compositor cearense Ednardo

Ednardo já tinha lançado o disco coletivo Meu corpo minha embalagem, todo gasto na viagem, com os amigos Rodger Rogério e Teti como o grupo “Pessoal do Ceará”, título dado pelo radialista e produtor musical Walter Silva (o Pica Pau). Encantado com o talento dessa turma, ele os convidou para um programa de TV. Em seguida os levou à gravadora Continental. O disco não têve divulgação merecida, segundo Ednardo, mas mostrou a força de canções como Terral e Beira-mar (essa gravada, na época, também por Eliana Pittman), entre outras que hoje são clássicas como Ingazeiras (dedicada ao artista plástico Aldemir Martins), Cavalo Ferro (Fagner/ Ricardo Bezerra) e Falando da Vida (Rodger/ Dedé Evangelista).

Na renovação do contrato, eles decidiram por pedir demissão e foram de malas e cuia parar na gravadora RCA Victor já com carreiras separadas. Ednardo conta que, em 1976, estava meio desencantado e prestes a voltar pra terrinha. Naquele ano, ele já havia lançado o disco Berro, e um dia tomando banho ouviu sua música na TV… Correu nu pra ver do que se tratava e descobriu que tinha agora uma música na abertura de novela global: o Pavão Misterioso. A gravadora imediatamente relançou o disco O Romance do Pavão Mysteriozo, que atingiu vendagem recorde ancorado no sucesso da novela.

A atriz e cantora Giselle Tigre, que está gravando um disco com canções de Ednardo e participou do show Elas Cantam Ednardo, comenta:

– Eu tinha dois anos de idade quando o disco Romance do Pavão Mysteriozo foi lançado, em 1974. Muito tempo depois, quando pude compreender a força poética desse álbum, fiquei realmente impactada. Os versos “há um só tempo num abraço estreito”; “Não vá tentar conseguir meu sorriso na hora que quero chorar”; “Meus passos estão sem norte, pra recompor serei forte”; “A força vem do braço ou da palavra sai”. Para se degustar cada canção. Conta ainda com uma interpretação memorável de A Palo Seco, de Belchior. “Que Deus salve todos nós e Deus guarde todos vós”, versos de Carneiro que abrem o disco, bem podiam fechar. Mas a última canção é justamente O Pavão Mysteriozo. “Eles são muitos, mas não podem voar”, encerra com maestria a mensagem subliminar desse extraordinário disco, desse fenomenal artista.

O parceiro e entusiasta Caio Napoleão acrescenta que esse disco tem que deixar de ser misterioso e todos devem conhecê-lo, pois da primeira à última música é uma “hecatombe”, não é plastificado e inaugura o rocknroll na música cearense.

O jornalista Augusto Benevides, amigo e produtor dos primeiros shows de Ednardo, com a palavra:

– O LP Romance do Pavão Mysteriozo, lançado pela RCA Victor em 1974, foi, até hoje, o melhor disco de Ednardo. Inspirado na literatura de cordel e cutucando o regime militar, o disco projetou definitivamente Ednardo no cenário da música popular brasileira. Teve enorme repercussão e até foi tema da novela Saramandaia, uma das melhores apresentadas pela Globo em todos os tempos. Doze faixas e cada música melhor que a outra. Quase todas com a assinatura do artista. Entre elas, destaco a lindíssima Ausência, Avião de Papel, Dorothy Lamour (Fausto e Patrúcio), Alazão e Pavão Mysteriozo. Aqui em Fortaleza, produzimos um especial na TV Verdes Mares, o primeiro especial de um artista cearense no canal 10, na televisão cearense. Foi um momento muito especial o lançamento do disco.

O cantor, compositor e pesquisador Pingo de Fortaleza, que tem um livro escrito sobre Maracatu, analisa:

– O álbum (LP) Romance do Pavão Mysteriozo, do compositor e cantor Ednardo, é um trabalho emblemático no universo musical brasileiro e especificamente cearense, pois a música título do disco evidencia em sua divisão rítmica o maracatu cearense através da utilização, por parte de Ednardo, do ritmo solene ou de coroação (novas nomenclaturas que vieram substituir o tempo “dolente”, pois maracatu é festa e não um cortejo de dor). Embora, no disco, o bumbo esteja no contratempo, e não o ferro (triângulo grave de ferro utilizado nos maracatus), como é comum nos cortejos de rua dos maracatus de Fortaleza, o ritmo de Pavão Mysteriozo reproduz fielmente essa batida mais características do maracatu cearense e me inspira até hoje a criar novas loas (canções de maracatu) para esse importante segmento da cultura cearense.

Vamos as faixas…

O disco abre com Carneiro, parceria com o genial Augusto Pontes e, segundo Ednardo, foi feita numa mesa de bar em pouco minutos como uma brincadeira, onde Augusto incitava a turma a ir “simbora” e correr atrás do sucesso. Imagens tropicalistas, jogo do bicho e o sonho de fazer sucesso, aparecer em revistas e na TV dava o mote desse baião com boas intervenções de flauta e sanfona. O arranjo foi sendo aprimorado com os anos e o resultado pode ser conferido no DVD 40 anos, já com um interlúdio instrumental no meio e o tutti de introdução com mais vigor.

Avião de papel segue na linha de uma carta de um pai pro filho que ia embora da cidade pequena. Começa com um “ostinatto” (melodia repetitiva) de baixo e uma flauta pontuando. Ao vivo, a parte vocal virou um reggae. Mais um Frevinho Danado, no título já diz tudo… O arranjo é bem tradicional dos frevos de Olinda e inaugura os temas carnavalescos de Ednardo, que serão sempre presente na sua obra daí em diante.

Ausência é um choro-canção belíssimo, música sempre pedida em shows até hoje. Teve um regravação meio caseira de Cássia Eller (lançamento póstumo) e, na original, conta com belo solo de flauta, e a participação de Amelinha no vocal. Varal, parceria com Tânia Cabral, começa com um “crescendo” e melodia em pergunta/resposta de orquestra e guitarra (Heraldo do Monte), em seguida alguns momentos mais lúdicos com flauta, trazendo já uma característica das composições de Ednardo, a alternância entre as tonalidades maior e menor, aqui no caso em Ré Maior, sem dúvida o tom mais usado na música cearense até hoje. O final termina com um guitarra bem rockeira.

Dorothy Lamour, parceria dos geniais Petrúcio Maia e Fausto Nilo, começa com um recitativo nos moldes dos standards da Broadway e cai num bolerão delicioso. Uma introdução e intermezzo baseado no vocal, e com caráter modal (estilo musical oposto ao tonal) dá um charme especial alternando também entre o maior e menor (lá maior/ lá menor). Teti regravou essa música com participação de Ednardo anos depois. Segundo o jornalista Marcos Sampaio (editor deste Blog) é uma música perfeita, impecável e uma das mais belas canções de todos os tempos.

Desembarque considero a música mais desconectada com o disco. É uma bela música, com a harmonia mais complexa de todas. Com sua influência mineira, não faria feio em nenhum disco da turma do Clube da Esquina… Começa com um uníssono (melodia idêntica) de voz e baixo, tem boas convenções musicais, orquestra dando o clima e finaliza com um vocalise sobre acordes diminutos que mais uma vez me lembra algo de Milton Nascimento, mostrando que a turma daqui tinha antena pra tudo de bom que se fazia na época…

Trem do interior, parceria com Fausto Nilo, é a faixa mais densa, tanto em letra quanto na música, e ainda acentuada pela orquestração de cordas bem tensa. Música difícil de ser reproduzida ao vivo. Teve uma releitura com a cantora Ilya no show Elas cantam Ednardo. O acorde final com a orquestra é de uma beleza descomunal.

Alazão, parceria com Brandão, é uma das minha preferidas. Abre com uma introdução de violão e flauta em caráter modal, cai num groove meio funkeado alternando partes mais líricas com a flauta sempre presente (característica do arranjador Hareton Salvaninni). Ela também alterna em maior e menor com a já falada tonalidade de Ré maior. A cantora Mona Gadelha fez uma releitura recente em show em homenagem ao poeta Soares Brandão. Ednardo estava presente e deu uma canja cantando da mesa onde estava sentado. Segundo Caio Napoleão, não existe nada melhor que isso.

A Palo Seco já era um hit e tinha sido gravada por Belchior (autor) e por Fagner. A versão do Ed valoriza a guitarra de Heraldo do Monte, que dá uma de Jimi Page pontuando a música inteira. O tom alto que escolheu mostra a potência e beleza da voz de Ednardo. No final Heraldo vira um “guitar hero” junto com a voz e finaliza numa frase de rock blues com direito a alavanca a lá” Van Halen” que seria bacana ver ao vivo.

Água Grande retoma as imagens que qualquer nordestino experimentou ao chegar em São Paulo vindo de uma cidade pequena. Essa sensação eu vivenciei anos depois, em 1985, quando cheguei lá pra estudar e era uma imagem impactante. Ela começa bem minimalista só com violão e voz, também na tonalidade de Ré maior, com passagens no tom menor e termina com grande orquestra, e uma percussão numas madeiras em crescendo. O cantor e compositor Daniel Groove sempre inclui essa música no seu repertório atual, mostrando a atemporalidade dessa canção marcante no disco.

O disco fecha com chave de ouro com a faixa título, inspirado no cordel homônimo de José Carmelo de Melo, que conta a história de uma condessa presa na torre de um castelo, e um pretendente rico faz encomenda para um inventor de um pássaro mecânico (como um helicóptero ou avião em formato de pavão) para conseguir chegar ao alto e pedir a mão da moça. Ednardo trocou o I por Y e o S por Z e adaptou a obra usando-a como metáfora para os anos de repressão que o País vivia na época.

A música começa com um ponteio de violão nos bordões (cordas grossas) até entrar no ritmo hipnótico e repetitivo do maracatu cearense, que Ednardo tornaria estilo marcante em futuras composições suas. A música  tem a tonalidade ambígua de Ré maior apesar de começar no Lá Maior (quinto grau) e alterna passagens no Relativo menor de Lá (fá sustenido menor ) e em Lá menor. A música teve muitas regravações, inclusive internacionais, como a da orquestra de Paul Mauriat. Até hoje é a música que mais lembra o artista (“Ah! O Ednardo do Pavão Misteryozo”), sendo muito requisitada em todos os shows, inclusive sendo a música que fecha os shows desde que comecei a tocar com Ednardo nos anos 1990.

O disco foi produzido por Walter Silva e teve três arranjadores. O já conhecido do Pessoal do Ceará Hareton Salvanini, que tem três discos solo cultuados pelos colecionadores de vinil e pode ser colocado no mesmo patamar de um Artur Verocai. Era especialista em arranjos de flautas e orquestra, tocava piano, cravo e sintetizadores. Autor também dos arranjos do genial disco Chão Sagrado, de Rodger e Teti. Salvanini tyambém é autor do arranjo do jingle famoso da Calça US Top, de 1976. Quem tem mais 50 lembra (“liberdade é uma calça velha azul e desbotada …”).

Isidoro Longano (o famoso Bolão), flautista e saxofonista, foi percursor do rock nacional com vários discos lançados nos anos 1950. É autor do solo de Estúpido Cupido, de Cely Campelo, gravou como músico de estúdio com artistas diversos como Roberto Carlos, Wilson Simonal, Made in Brazil, Paulo Ricardo. São seus os arranjos de Carneiro e Dorothy Lamour.

Heraldo do Monte completa o time. Ele, que é pernambucano e mora em São Paulo desde 1959, fez parte do histórico grupo Quarteto Novo”,  com Hermeto Pascoal e Airto Moreira (acompanharam Edu lobo na música Ponteio, no Festival da  Record). Heraldo é um craque na viola, violão e guitarra sendo um dos pioneiros na fusão do Jazz Bebop com as melodias e escalas nordestinas. Tem vários discos solo e em parceria. Destaque para o homônimo de 1980, Cordas Vivas (1983) e o clássico ConSertão (1982 com Elomar, Artur Moreira lima e Paulo Moura).

Eu considero um dos grandes momentos da minha carreira ter feito a direção musical e releitura de arranjos do Romance do Pavão Mysteriozo, em 2014, com Ednardo e uma banda de músicos cariocas numa apresentação com lotação esgotada no teatro Municipal de São Paulo, durante a Virada Cultural. Repetimos o show aqui em Fortaleza com uma banda só de cearenses na Praça Verde do Dragão do Mar, no evento Festa na Tenda.

Sobre o disco, Ednardo comentou comigo esse dias:

– Este disco foi o primeiro grande sucesso de massa que eu tive e chamou atenção da mídia não só para a música do Pessoal do Ceará, como de muitos compositores nordestinos, e permanece icônico atravessando várias gerações.

Ter a oportunidade de conviver como músico e amigo de Ednardo é uma das coisas maravilhosas que a minha profissão me proporciona e sou muito grato por isso.

Escutem esse disco com o cuidado e atenção que ele merece!

Mimi Rocha é músico e produtor. Ele escreve nesse espaço quinzenalmente

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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