A máxima que “cinquenta anos não são cinquenta dias” a gente escuta desde criança, e quando olhamos pra trás vemos como passou voando. Em 1971 o mundo vivia uma fase de transição, com o fantasma da guerra do Vietnã, e ameaça atômica da guerra fria ainda nos rondando. Os americanos continuavam a explorar a lua, a Intel lançava seu primeiro microprocessador, Pablo Neruda ganhava o Nobel de literatura.

Por aqui a ditadura fazia sumir muita gente, os porões estavam lotados, mas o ufanismo de “País do futuro”, recém tricampeão de futebol, anestesiava a massa. Pelé se despedia da seleção, tinha um surto de meningite e entrávamos na era atômica com a usina de Angra.

Aqui na “Assunção”, tínhamos César Cals e Vicente Fialho, e  pouca novidade além da vitória do Ceará após anos em um campeonato disputadíssimo num jogo com direito a invasão de campo, alambrado quebrado e gol as 45 do segundo tempo… Bem mas aqui o papo é música e 1971 foi um ano prodigioso com muitos discos clássicos e hits que tocam até hoje.

https://www.youtube.com/watch?v=AgEoCTLqY3k

O que se esperar de um ano que teve Imagine (John Lennon), Led Zeppelin IV, Roberto Carlos (Detalhes), Construção (Chico Buarque) entre tantos outros lançamentos clássicos?

Como o próprio Lennon já tinha previsto, o sonho hippie e pacifista da geração anos 70 que vivia o paz e amor de Woodstock, tinha acabado com o super violento festival de Altamont, onde um assassinato foi filmado ao vivo durante o show dos Rolling Stones enterrado de vez a década do “Flower Power”.

Apesar disso um dos hits mais tocados foi o o hino riponga My Sweet Lord (George Harrison), uma ode ao Deus Krishna e ao movimento Hare Krishna popular na época onde os gurus prometiam o nirvana ao ingênuos.

Fica até difícil fazer um Top 10 num ano tão prolífico como esse mas vamos lá…

https://www.youtube.com/watch?v=6hBLHkmBKDg

No rock foi ano de Stairway to Heaven e Black Dog, do Led Zeppelin no icônico disco do velho. Apesar de inspirada na música do grupo Spirit Taurus, Jimi Page criou essa mini sinfonia maravilhosa que até hoje é a música mais tocada em qualquer loja de instrumentos musicais. É condição sine qua non que todo guitarrista saiba esse solo. O disco todo merece audição cuidadosa por conter a fase mais madura da banda e uma das minhas favoritas deles Going to California.

O Black Sabbath lançou o pesado e denso Master of Reality, cimentando de vez o estilo heavy metal, com riffs (frases musicais repetitivas) marcantes, lentas, a voz cavernosa porém melódica de Ozzy em petardos como Children of the grave, Sweet Leaf  (ode à canabis), Into the Void.

Os Rolling Stones lançaram o ótimo Stick Fingers, que já começa bem pela capa que tinha até um zíper, e as hoje clássicas Brown Sugar e Wild Horses. O disco foi gravado no lendário estúdio Muscle Shoals, no Alabama, casa de discos históricos de Aretha Franklin, Percy Sledge, Cher, Dylan, Paul Simon e tantos outros. O estúdio em si já merece uma coluna à parte: sua particularidade era uma banda de apoio com músicos em sua maioria brancos que tinham um suingue inigualável, com destaque para o guitarrista Duanne Almann.

Ainda no jubileu de ouro, o The Who lança o excelente Who’s Next deixando pra posteridade Baba O’Riley com aquela introdução incrível do sintetizador; Behind Blue Eyes, que voltou à moda no começo dos anos 2000 com um versão do Limp Bizkit (que apesar de começar bem, mutila boa parte da música cortando um trecho); Won’t Get Fooled Again é outra pedrada e teve versão bacana do Van Halen nos anos 1990.

Ainda no rock, tivemos o álbum póstumo de Janis Joplin Pearl, com a versão de Mercedes Benz. O Yes lançou seu primeiro hit, Roundabout, no maravilhoso disco Fragile que mostra toda a virtuosidade de seus integrantes como na clássica Mood for A Day.

Santana se solidifica com Abraxas, de onde destaco Black Magic Woman e Oye Como Va, e com uma capa incrível também. Destaco também Aqualung do Jethro Tull; Maggot Brain da banda Parliament Funkadelick; Pink Floyd com o Meddle, que traz a ótima Echoes.

Indo para o pop foi um ano de muitos lançamentos interessantes…

Imagine realmente pode ser considerado o disco do ano. É uma verdadeira coletânea de sucessos e o melhor que John Lennon produziu após o Beatles. A faixa título virou um hino, mas Jealous Guy e Gimme Some Truth roubam a cena. A lindíssima How e a puxada de orelha no Paul em How do You Sleep completam um disco perfeito que traz ainda os ex companheiros Harrison e Ringo na maioria das faixas.

Cat Stevens lança o ótimo Teaser and The firecat, mas as músicas que tocam no rádio dele em 1971, Wild World e Where do The Children Play são do clássico álbum Tea For The Tillerman, de 1970.

Carole King chega ao sucesso como cantora (antes já era como compositora) com o incrível Tapestry, que tinha hits como It’s Too Late, So Far Away, Jazzman e You’ve Got A Friendessa última também lançada nesse ano no álbum Mud Slide Slim de James Taylor.

No soul, Marvin Gaye foi um estrondo com o álbum conceitual pacifista What’s Going On, e Bill Withers com a clássica Ain’t no Sunshine, do disco Just As I Am que toca até hoje. Menção honrosa também pra Shaft, de Isaac Hayes; Joni Mitchell e o belo Blue, Leonard Cohen lançou o Songs of Love and Hate. Paul e Linda McCartney com o disco Ram trazendo as belas Another Day e Too Many People.

https://www.youtube.com/watch?v=FmMleq61iJ4

O jazz vivia o auge do fusion (junção com rock, pop, soul) e teve a estreia da incrível Mahavishnu Orchestra, de John Mclaughlin, em Inner Mounting Flame, um dos maiores clássicos do estilo. Miles Davis estava na fase “funk/James Brown” com ótimo Jack Johnson, e o ao vivo Live Evil, que trazia na banda o brasileiro Airto Moreira e duas músicas de Hermeto Paschoal que só foram creditadas em edições atuais (Miles era mestre em se apropriar de músicas de seus músicos…). Obs.: verdade seja dita que, com seus arranjos, ele virava quase um parceiro na composição.

Freddie Hubbard lançou o ótimo Straight Life com o tema Mr. Clean e participações de George Benson (lançou Beyond The Blue Horizon) e Herbie Hancock que também lançou o super sampleado hoje pelos DJs Mwandishi.

No Brasil sem dúvida o disco de Roberto Carlos é quase uma unanimidade, mostrando sua nova fase mais soul, rock e com belas baladas. Pode ser considerado o seu melhor. Detalhes dispensa comentários. Como Dois e dois, Debaixo dos Caracóis do Seu cabelo (feita para Caetano Veloso), o soul de Todos estão Surdos, Amada Amante, as baladas Traumas, Se eu Partir, e a que pode ser considerada uma das dez mais bonitas canções brasileiras de amor: De Tanto Amor já tornam esse uma obra-prima.

Tim Maia lançou o seu segundo disco repetindo o sucesso estrondoso do primeiro com a mistura irresistível de funk, música nordestina, soul e baladas que, na sua poderosa voz, invadiu as ondas de rádio do país. Não quero Dinheiro, A festa de Santo Reis, Você, Não vou Ficar (já gravada antes pelo Rei), I Don’t Know What to do with Myself, Meu País, até hoje são tocadas em bares mostrando a longevidade do disco.

Chico Buarque e seu manifesto anti-ditadura Construção, traz arranjos ainda meio tropicalistas do genial maestro Rogério Duprat, e clássicos do nível de Deus lhe pague, Cotidiano, Samba de Orly (sobre o exílio), Valsinha e Minha Estória. É cotado como um dos três discos mais importantes da MPB.

Elis Regina inaugura sua fase mais moderna com o disco Ela, produzido por Nelson Mota (que teve um caso com ela na época. A propósito, com quem ele não teve?…). É um trabalho irregular como toda transição, mas apresenta um de seus maiores sucessos: Madalena (Ivan Lins/ Vitor Martins). Tem ainda uma versão de Golden Slumbers (Lennon/ Mccartney) e a belíssima Estrada do Sol (Jobim/ Dolores Duran).

A turma aqui da terrinha ainda estava na batalha por espaço no sul maravilha.

Belchior, em 1971, se mudou para o Rio de Janeiro e venceu o IV Festival Universitário da MPB com a canção Na Hora do Almoço, cantada por Jorginho Telles e Jorge Nery. Fagner inscreve três músicas no Festival de Música Jovem promovido pelo Centro Estudantil da Universidade de Brasília (CEUB), onde estuda Arquitetura e tira 1oº lugar com Mucuripe (Fagner/ Belchior),  6º lugar com Manera Fru Fru Manera (Fagner/ Ricardo Bezerra) e ganha prêmio especial do júri com Cavalo Ferro (Fagner/ Ricardo Bezerra) como melhor Intérprete e melhor arranjo.

https://www.youtube.com/watch?v=wT-syNxAAWA

Ednardo, nos últimos dias de 1970, mais precisamente no dia 26 de dezembro, venceu em Recife a segunda edição do festival de música com a música Beira-Mar. Em 1971 foi ano de consolidar a carreira com novas canções e amadurecer a ideia de ir “simbora” pro Rio de Janeiro (como na canção Carneiro, parceria com Augusto Pontes), que se concretizou em 1972 numa viagem de fusca que durou cinco dias.

Ainda em 1971, foram formadas alguma bandas seminais: Dr. Feelgood, Eagles, Foghat, New York Dolls, Roxy Music, Secos & Molhados e Wings. Encerraram as suas atividades no período Country Joe and the Fish, Derek & The Dominos, Free e The Monkees.

Eu fiz 6 anos em 1971 e na época só pensava em ser jogador de futebol, mais aí é outra estória.

Mimi Rocha é músico e produtor. Ele escreve nesse espaço quinzenalmente

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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