Por Flávio Mantovani

Há 30 anos, a gravadora Continental colocava no mercado Bonito, Lindo e Joiado, primeiro disco do cantor e compositor Falcão. O trabalho traz a ironia, a irreverência e a crítica social que marcariam a carreira do cearense, embora essa última vertente tenha ficado um pouco encoberta pelo aspecto mais escrachado de sua obra.

Desde então, Falcão se firmou como um artista singular na história da MPB: não havia nada parecido com ele naquele início dos anos 1990. Cabe aqui, aliás, abordar um ponto que sempre causou muita confusão. Embora suas músicas contenham humor, Falcão se considera cantor e compositor. Mas o fato de ser do Ceará, terra dos maiores nomes do gênero, contribuiu para que o cabra nascido em Pereiro fosse colocado na vala comum dos humoristas.

A música, no entanto, está na base de seu trabalho e não é apenas um elemento casual, como no caso de Tom Cavalcante e Tiririca. Até os grandes mestres misturam as bolas. Chico Anysio chegou a convidá-lo para integrar a Escolinha do Professor Raimundo.

A intersecção bem-sucedida com a televisão, a crescente participação em filmes e a desenvoltura nas redes sociais (seus vídeos nos quais comenta assuntos aleatórios costumam ter muitos acessos) ajudaram a reforçar o estereótipo do humorista que canta.

Mas o fato é que Falcão supera com tranquilidade a marca de 500 mil cópias vendidas ao longo da carreira, isso se considerarmos uma projeção bastante conservadora.

Financiamento coletivo

Bonito, Lindo e Joiado foi lançado originalmente de forma independente no final de 1990. Oriundo do meio universitário, Falcão já fazia sucesso no circuito de bares de Fortaleza e as fitas que circulavam com suas músicas não eram capazes de suprir a demanda do público, que começou a pressionar pelo lançamento de um disco.

O LP foi bancado por um esquema de financiamento coletivo implementado pelo ex-empresário Hélio Santos e executado com a ajuda do jornalista Tarcísio Matos, principal parceiro do cantor até hoje, e de outros apoiadores.

Junto com o ingresso, era oferecido ao público um voucher que daria direito a uma cópia autografada. A grana que entrava ia bancando as sessões no Proaudio Studio, referência em gravação profissional na época em Fortaleza.

Conforme descreve o encarte da edição independente, o disco foi gravado “por cima de pau e pedra – mais pedra do que pau” entre agosto e novembro de 1990. As sessões aconteciam geralmente à noite, quando o aluguel do espaço era mais barato.

O disco teve a sorte de contar com a participação dos melhores músicos da cidade, entre eles Tarcísio Sardinha (violonista), que embarcaram na proposta do “quanto pior, melhor”, apesar do cachê irrisório.

A edição independente fez sucesso no meio intelectual de Fortaleza. Hoje virou cult, a ponto de o próprio Falcão já ter declarado não ter uma cópia dessa primeira tiragem.

Salvo pela Dança do Jumento

A sorte de Falcão começou a mudar quando o cantor Beto Barbosa, que já era uma estrela nacional, viu uma apresentação do cantor numa casa de shows na capital cearense.

Apesar da irreverência e do apelo ao politicamente incorreto presentes nas letras, o que mais chamou a atenção do Rei da Lambada foi a “Dança do Jumento”, na qual Falcão caminha curvado pelo palco, balançando o braço, emulando a genitália flutuante do animal.

Barbosa convidou Falcão para um almoço na sua cobertura e prometeu apresentar a fita para a Continental, onde já era um dos maiores vendedores de disco na época. Bateu o pé junto aos executivos, que de início relutaram em lançar o trabalho, mas acabou convencendo a direção da gravadora sediada em São Paulo.

Selo censurado

Mas o LP relançado em 1991 trazia uma alteração no selo central. O original continha a fotografia de um casal simulando a posição sexual 69, imagem que faz parte da série “The Kiss” do fotógrafo Jan Saudek.

A foto “obscena” foi banida da nova tiragem. Em seu lugar, foram colocadas as informações técnicas da prensagem. O número 69 aparece apenas na contracapa, em vermelho, indicando o lado A e o lado B do disco. Além disso, os primeiros lotes saíram com a tarja “Proibido para menores” no canto superior esquerdo.

Tendo como carro-chefe I’m Not Dog No, versão em inglês do clássico brega de Waldick Soriano, Bonito, Lindo e Joiado vendeu aproximadamente 80 mil cópias, segundo estimativas não oficiais. Virou o cartão de visitas de Falcão, que foi aos poucos ampliando seu público e ganhando a simpatia da crítica especializada no Sudeste.

Três anos depois, o cearense assinaria um contrato com uma major – a BMG – por intermédio do conterrâneo Raimundo Fagner. Mas essa já é outra história.

Flávio Mantovani é jornalista e está produzindo de maneira independente a biografia de Falcão

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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