Elza Soares Ao vivo no Municipal passeia pela história da cantora, dando espaço para trabalhos mais recentes

Quando deixou a favela da Água Santa, no Rio de Janeiro, pra encarar uma carreira artística, Elza Soares já havia provado muito do lado mais amargo da vida. Negra, pobre, casada à força quando ainda era criança, foi mãe pouco depois, sofreu violência doméstica e viu seus filhos morrerem de fome. Nada foi fácil e se aventurar num programa de calouros na tentativa de levar o prêmio e algum dinheiro pra casa ainda não trazia a expectativa de estrelato. No máximo, o jantar daquele dia.

Quis o destino que o Brasil visse ali uma das vozes mais extraordinariamente originais que se tem notícia. Era jazz em essência, embora ela não tivesse a mínima noção do que fosse jazz. Daí em diante, a carioca nascida em 23 de junho de 1930 deu início a uma carreira marcada por momentos de aclamação absoluta e outros de total ostracismo. Entre um e outro, o que sobrava era sua marra, sua coragem pra enfrentar cada situação de cabeça erguida e insistir na profissão de cantora que escolheu.

Os altos e baixos dessa estrada que Elza Soares carregou no próprio braço é que marcam o álbum Ao vivo no Municipal. Previsto para ser filmado no Morro da Urca em 2020, o espetáculo foi transferido de data e local por causa da pandemia do coronavirus. Aconteceu no imponente Theatro Municipal de São Paulo, nos dias 17 e 18 de janeiro deste ano e tornou-se o derradeiro canto da sambista que faleceu no dia 20. São 15 faixas selecionadas para evidenciar um discurso. Ignorando sucessos comerciais, a ideia é reverenciar a biografia de Elza.

Numa trajetória marcada por tantos recomeços e tantas promessas de perenidade, Elza abre com Meu Guri (Chico Buarque), numa dilacerante versão de voz e piano que ela apresentou pela primeira vez no disco Trajetória (1997). Vindo na esteira da sua muito bem recebida participação na série “Casa de Samba” (1996), o disco teve uma produção luxuosa da gravadora Universal, que logo a deixou de lado. Na sequencia, ela foi para a pequena Eldorado, onde gravou o esquecido Carioca da Gema (1999), de onde agora ela recupera a bossa Balanço Zona sul.

A tônica de Ao vivo no Municipal é moderna, com arranjos puxados pro rock, pro eletrônico, pra subversão que Elza sempre prezou. E é nessa embalagem que ela entrega Se acaso você chegasse, seu primeiro sucesso, lá dos anos 1960. Na década seguinte, ela lançaria o moderníssimo Elza Pede Passagem, de onde pesca o sambarock Saltei de banda. Vivendo o turbulento casamento com Garrincha, a cantora começava a viver seu primeiro momento de queda nessa época. Vendo as gravadoras darem mais atenção a outras sambistas, como Clara Nunes, ela buscou a Tapecar para poder gravar com mais liberdade criativa. A estreia na pequena gravadora foi com o compacto Salve a Mocidade. Depois de uma série de projetos de menor repercussão, foi para os Estados Unidos viver um autoexílio artístico.

O retorno oficial foi depois da promessa não cumprida que foi Trajetória. Elza lançou pelo pequeno selo Maianga o aclamado Do cóccix até o pescoço (2002), que abre com a biográfica Dura na Queda e continua com a explosiva A carne. Sucesso de crítica e público, ela estava de volta ao centro da MPB, e no ano seguinte lançou Vivo Feliz, na esteira do seu relacionamento com o rapper Anderson Lugão. Com muitos loops, beats e efeitos estranhos, o álbum foi corajoso e inovador, mas não teve a divulgação ideial. O bom repertório trouxe o sucesso maior de Paulo Vanzolini (Volta por cima) e uma composição da própria Elza (Lata d’água), que carrega toda a dor e imponência de sua errática luta pela vida e pela arte.

Depois de tantas quedas e levantadas, Elza Soares teve chance de viver mais um renascimento em sua última década de vida. Com o lançamento de A mulher do fim do mundo (2015), ela se viu próxima da juventude, pode falar de forma contemporânea sobre feminismo, negritude e injustiça social. Se conectando os netos dos seus primeiros fãs, ela seguiu com Deus é mulher (2018) e Planeta Fome (2019) dando sua voz aos novos compositores brasileiros. O que viria a seguir? Uma nova queda? A tranquilidade de uma carreira à altura de sua obra? O tempo resolveu essa questão e Elza Soares realizou o seu maior sonho de vida. Ela cantou até o último instante.

Repertório de Elza Soares Ao vivo no Municipal:

  1. Meu Guri (Chico Buarque/ “Trajetória”, 1997)
  2. Dura Na Queda (Chico Buarque/ “Do cóccix até o pescoço”, 2002)
  3. O Morro (Tom Jobim/ Billy Blanco/ “Senhora da Terra”, 1979)
  4. Lata D’Água (Elza Soares/ “Vivo feliz”, 2003)
  5. Comportamento Geral (Gonzaguinha/ “Planeta fome”, 2019)
  6. Se Acaso Você Chegasse (Lupicínio Rodrigues/ Felisberto Martins/ “Se acaso você chegasse”, 1960)
  7. Balanço Zona Sul (Tito Madi/ “Carioca da Gema”, 1999)
  8. Malandro (Jorge Aragão/ Jotabê/ “Lição de vida”, 1976)
  9. A Carne (Seu Jorge/ Marcelo Yuka/ Ulisses Cappelletti/ “Do cóccix até o pescoço”, 2002)
  10. Volta Por Cima (Paulo Vanzolini/ “Vivo feliz”, 2003)
  11. Maria da Vila Matilde (Douglas Germano/ “A mulher do fim do mundo”, 2015)
  12. Saltei de Banda (Zé Rodrix/ Luiz Carlos Sá/ “Elza Pede Passagem”, 1972)
  13. Salve A Mocidade (Luiz Reis/ compacto, 1974)
  14. Banho (Tulipa Ruiz/ “Deus é mulher”, 2018)
  15. A Mulher do Fim do Mundo (Rômulo Fróes/ Alice Coutinho/ “A mulher do fim do mundo”, 2015)

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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