* Texto publicado no dia 23 de novembro, no caderno Vida&Arte, por ocasião da morte de Erasmo Carlos

Não queria escrever esse texto. Ele é inevitável, é necessário, mas dói em um canto muito especial. Tanto que ele terá dois começos. Se a notícia da morte de Erasmo Carlos veio duas vezes, o comentário também terá dois começos. Não há deboche ou pouco caso nessa proposta. Talvez algo de humor, mas o próprio Tremendão tratou com bom humor quando, há algumas semanas, circulou a notícia de sua morte e, coincidentemente, ele a desmentiu no Dia de Finados.

Para começar o primeiro começo, é muito sintomático que Erasmo parta tão pouco depois de Gal Costa. É uma geração que se despede. Em comum, ambos têm uma carreira marcada pelo ecletismo e um pé no rock. Para ser mais justo com o carioca da Tijuca, os dois pés. E só não eram três por uma limitação corporal. Tendo nascido Erasmo Esteves em 1941, ele viu o rock nascer, crescer e se expandir em infinitas possibilidades. Fã de Elvis Presley, Little Richard, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, Carl Perkins e outros pioneiros, não tardou para aquele rapaz grandão e desengonçado meter um casaco de couro, uma brilhantina e subir o topete.

Erasmo Carlos é um pioneiro e um dos grandes defensores do rock. Porém, num país de memória curta e amnésia farta, ele foi vaiado e expulso do palco do primeiro megafestival dedicado ao estilo. Na década em que o mercado colocou o rock nacional em evidência, ele foi tratado como piada no Rock in Rio de 1985. Naquele momento, a juventude não estava interessada em reconhecer quem havia aberto as portas para que, futuramente, surgissem paralamas, lulus e kid abelhas. A propósito, na primeira fita demo gravada pelo Barão Vermelho estava lá a voz de Cazuza berrando “Você me acende”, versão de Erasmo para o blues “You turn me on”.

Mas verdade seja dita, Erasmo Carlos foi muito além do rock. E aí, me desculpem, reside sua superioridade à obra do irmão camarada Roberto. Enquanto um se prendeu às próprias manias e foi se distanciando de tudo que pudesse renovar seu público, o outro se manteve em busca de novos sons, novos parceiros e novas ideias. Fez samba-rock com Jorge Benjor, rap com Emicida, soul music com Tim Maia, balada com Arnaldo Antunes e por aí vai. A essa lista, acrescente Marcelo Camelo, Caetano Veloso, Adriana Calcanhotto e Tim Bernardes, com quem compôs a vingativa “Praga”, gravada no mais recente disco de Alaíde Costa.

Além da obra volumosa, Erasmo compartilhou Roberto uma espécie de onipresença. Com tantos discos gravados por eles e tantas composições nas vozes de tanta gente, é muito provável que você que diz que não gosta dos ídolos da Jovem Guarda, seja fã de uma música deles sem saber que é deles. E é aí que vem o segundo começo desse texto.

Certa vez, estava a caminho da universidade onde comecei um curso que não me despertava interesse. Nada me despertava interesse naquele momento, para bem da verdade. Algum caminho precisava se abrir na minha frente, uma vez que os que eu estava tentando não estavam chegando a muito canto. Pelo rádio da topic, começou um som de violão que eu não reconheci de imediato, mas logo a primeira frase me pegou como um bofete impiedoso. Era Erasmo Carlos cantando “Filho único” e algo ficou ecoando na minha cabeça.

Desci do transporte atordoado e decidido a retomar o plano. Optei por um novo curso, descobri o Jornalismo e aqui estou homenageando um ídolo. Muito obrigado, Erasmo, por me trazer até aqui.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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