Crianças com idades entre 0 e 6 anos são as principais vítimas de violência doméstica atendidas no Hospital de Pronto-Socorro João XXIII (HPS), em Belo Horizonte. Elas representam 36,7% de um total de 1.152 casos de violação dos direitos das crianças e adolescentes, registrados em um período de seis meses pela unidade hospitalar, que é referência em atendimento de urgência em Minas Gerais.

Os dados são de uma tese de doutorado em psicologia, da assistente social Fernanda Flaviana de Souza Martins, que resultaram no livro “Análise Institucional na Saúde – O Impacto da Violência Intrafamiliar nas Crianças e Adolescentes”, lançado quinta-feira. A obra relata várias histórias de violência física e psicológica contra menores, realidade que, segundo a autora do trabalho científico, pouco mudou nos 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), comemorados hoje. “Uma coisa que me preocupa muito é que, passados 25 anos do ECA, a violência continua presente na sociedade e subnotificada. Nem todos os casos são registrados, nem pelo campo da educação, nem pela sociedade. As pessoas ainda têm medo de retaliações”, conclui a pesquisadora.

O levantamento mostra ainda que os meninos são os  mais são agredidos (70,9%). As meninas representam 29% dos atendimentos. Para Fernanda, os garotos são menos dóceis que as meninas e estão mais sujeitos à agressão física. Foram quatro anos de estudos aprofundados em violência e análise institucional, dos quais Fernanda passou seis meses mergulhada em 1,7 mil prontuários do HPS. Ela pesquisou histórico de vítimas com idade até 18 anos. Paralelamente, Fernanda entrevistou médicos, psicólogos, assistentes sociais e parentes de menores vítimas de violência internados no Centro de Tratamento Intensivo (CTI). “O hospital me solicitou uma investigação, pois muitos casos deram entrada como acidentes domésticos. Havia uma violência oculta”, disse a pesquisadora. “Pude confirmar nesse estudo que a violência é realmente uma questão de saúde pública. Não tem impacto somente na vida da criança e do adolescente, mas também tem um custo social, econômico e cultural na sociedade”, reforça.

Para a pesquisadora, a agressão física contra menores ainda é vista como uma fórmula de educação, sendo diversas vezes naturalizada e banalizada. “Os pais se acham no direito de bater nos filhos, embora existam leis proibindo” comenta. Quando esse espaço privado da violência se torna público, segundo ela, é preciso uma intervenção por parte das autoridades e da sociedade. “Parentes e vizinhos das vítimas têm a obrigação de relatar às autoridades pelo disque-denúncia 100. A ligação é sigilosa”, orienta.

Dos 1,7 mil prontuários analisados, 10,2% foram por agressão física. Os acidentes domésticos correspondem a 14,3%, mas muitos dos relatos de pais e responsáveis são para encobrir agressões físicas. As quedas foram 20,5% dos casos e, ingestão de corpos estranhos, 7,6%. “Há muita violência oculta em quedas e queimaduras. Houve o caso de uma menina de 14 anos que deu entrada no hospital com o corpo queimado por acidente. Depois, o pai da menina confirmou ao serviço social que a sua mulher havia jogado álcool na filha e ateado fogo”, relata a pesquisadora. Em outra ocorrência, envolvendo um menino de 5 anos, que teve o braço quebrado, a avó, ao ser entrevistada pela assistente social do HPS, desmentiu a filha que alegava acidente doméstico e a denunciou por agressão. O menino já havia sido internado anteriormente com queimaduras e a avó relatou outra ação violenta da filha. “Casos de reincidência precisam ser olhados com muito cuidado”, disse Fernanda.

O HPS recebe vítimas de todo estado, mas a maioria (43%) é de BH. Outras 32,6% são da Grande BH, com destaque para Ribeirão das Neves (5,9%), Contagem (5%), Sabará e Santa Luzia (4,2%). Os bairros da capital com maiores incidências de violência doméstica contra menores são o Taquaril, Independência e Vera Cruz. “É válido ressaltar que a violência doméstica não tem classe social. É cometida em todas elas”, concluiu Fernanda.

Psicológico

As tentativas de autoextermínio são muito presentes entre os jovens, observou a pesquisadora, muitos com indicadores de depressão. “São muitas meninas que tomam remédios, muitas vezes por sofrerem violência psicológica ou sexual dentro de casa”, alerta Fernanda. Há casos de meninas de 8 anos que tentaram se matar, segundo ela. “A marca física é superada de uma certa forma, mas as consequências de ordem psicológica e social perpetuam por muitos anos na vida de uma pessoa”, alerta.

Um caso de violência contra recém-nascidos, muito comum e que muitas vezes não deixa marcas, é a Síndrome do Bebê Sacudido. Em momentos de descontrole, adultos, principalmente os pais, agitam fortemente a criança e isso pode causar danos ao cérebro do bebê, com risco, inclusive, de ficar em estado vegetativo, segundo a pesquisadora.
Outro problema detectado no HPS é um transtorno mental conhecido por Síndrome de Münchausen por procuração, que é uma modalidade de abuso infantil em que um dos pais ou responsável, em geral a mãe, falsificam sintomas ou sinais na criança para considerá-la doente. “Às vezes, eles dão remédios pesados à criança e causam sequelas que podem levar à morte”, relata. Uma mãe levou o filho ao hospital e foi descoberto que ela já havia causado a morte de um outro por causa da Síndrome de Münchausen, conta a pesquisadora. Em outra ocorrência, um bebê de sete meses deu entrada no HPS com queimaduras profundas no pulso, causadas por óleo quente e também traumatismo craniano. A família entrou em contradição na hora de relatar o que havia acontecido e os médicos concluíram que a criança havia sido agredida.

Mães cometem maior parte das agressões

As mães aparecem como as principais responsáveis pela violação dos direitos das crianças atendidas no HPS, segundo Fernanda Martins. Em muitos casos, elas têm problemas de alcoolismo ou estão desempregadas. “Há uma vinculação patológica. São famílias que trazem um histórico de violência intergeracional”, reforça a assistente social, que pesquisou casos de violência contra crianças e adolescentes registrados no  Hospital de Pronto-Socorro João XXIII (HPS), em Belo Horizonte.

Os anos de vigência do ECA, segundo Fernanda, não foram suficientes para romper com a violência que está enraizada culturalmente na sociedade. Até hoje, afirma , há uma violência aceita, naturalizada e banalizada. “A cada 10 minutos, uma criança é vítima de violência no Brasil. O que me surpreende muito é que esse número está crescendo”, lamenta a pesquisadora, ao citar o levantamento das denúncias de maus tratos contra crianças no ano passado, divulgado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos do Governo Federal. Mais de 150 mil denúncias foram feitas em 2014 ao Disque 100.

A conclusão da pesquisadora é que as crianças precisam ter um lugar central nas políticas públicas, o que significa, segundo ela, acesso à educação formal, principalmente à infantil. Ela também defende uma política de fortalecimento de vínculos familiares e cita como exemplo os Centros de Referência de Assistência Social (Cras), que trabalham com a prevenção.

Passados 25 anos do ECA, suas regras não saíram totalmente do papel, segundo Fernanda. Ela lembra que nesse período surgiram duas leis importantes, a da palmada (Lei 13.010/2014), que diz que qualquer agressão contra a criança e adolescente é crime e a Lei da Adoção (12.012/2010). “A adoção é a última alternativa. A criança tem o direito de conviver com a sua família biológica. Em muitos casos de violência, a criança é levada à institucionalização. São retiradas de seus pais e encaminhadas ao acolhimento, quando deveriam fazer um trabalho social com as famílias para desenvolvimento de vínculos e afetos”, defende a especialista.

Fonte: O Estado de  Minas

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Valeska Andrade

Formada em História pela Universidade Federal do Ceará e em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará. Especialista em Cultura Brasileira e Arte Educação. Coordenou o Programa O POVO na Educação até agosto de 2010. Pesquisadora e orientadora do POVO na Educação de 2003 a 2010, desenvolveu, entre outras atividades, a leitura crítica e a educomunicação nas salas de aula, utilizando o jornal como principal ferramenta pedagógica. Atualmente, é professora de história da rede estadual de ensino. Pesquisadora do Maracatu Cearense e das práticas educacionais inovadoras. Sempre curiosa!!!

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