Nas prateleiras, empilham-se conhecimento e sabedoria. As 3,5 mil obras literárias da biblioteca da Unidade de Internação de Santa Maria representam para muitos internos páginas em branco para uma nova história. Cecília*, de 18 anos, não só adquiriu o hábito da leitura — devora, em média, três livros por semana — como também escreve e, com uma redação que fez para o Dia do Professor, ganhou prêmio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). “Quando eu cheguei, nem queria ler”, confessa.

A unidade recebeu o apelido de “cadeia de papel” pelo pioneirismo em oferecer essa opção aos internos — projeto que existe há dois anos. Segundo o agente penitenciário responsável pela biblioteca Abdallah Antun, cerca de 90% dos jovens costumam ler. Antun diz que eles pedem pelos livros e que a mudança no vocabulário é nítida. “Eles chegam falando muitas gírias, é difícil de compreender. Com o livro, melhoram o linguajar.” Como a maioria dos internos, a vencedora do prêmio da Unesco encontrou no ato de ler mais do que um passatempo. “É quando eu vou ‘para fora'”, compara a jovem que está no sistema de socioeducação há um ano e um mês devido a envolvimento com tráfico de drogas. Ainda sem previsão de quando sairá, planeja fazer o Exame Nacional do Ensino Médio para publicidade. A prova para internos e detentos está prevista para o início de dezembro. Entre o acervo de Cecília, destacam-se os autores francês Albert Camus, o russo Fiódor Dostoiévski, com a obra Crime e Castigo, e o escocês Arthur Conan Doyle, criador do personagem Sherlock Holmes.

Exemplo

A redação foi uma homenagem à professora de direito da Universidade de Brasília Débora Diniz, que conheceu a interna ao desenvolver pesquisa na unidade. A dedicação da garota aos estudos chamou a atenção. Para a docente, ela é um exemplo de que a educação é capaz de abrir novos horizontes para jovens em conflito com a lei e ressocializá-los. “A principal lição dessa história é que, com educação e políticas sociais, é possível desenvolver um outro mundo. Cuidar dela [da jovem] é cuidar de todos nós.” Débora conta que Cecília participa, ainda, de um grupo de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, para alunos do ensino médio. “Ela é a primeira do País do sistema socioeducativo a ter uma bolsa do CNPq.” Em um lugar que só tem grades, ela chega com livros nas mãos. Toda frágil, passa pelo corredor pesado de maldades. Para na porta do meu quarto e abre um sorriso que reflete um futuro cheio de promessas. Ela diz que sou capaz, que tenho muitas qualidades, que isso vai acabar e que, quando estiver em LIBERDADE, poderei recomeçar junto com ela. Às vezes, penso em desistir, mas ela me olha nos olhos e diz: “Eu estou com você”. Sou uma adolescente em conflito com a lei, estudo em escola de cadeia e tenho 18 anos. A minha professora não ensina matérias, mas sentidos para vida. É isso que a faz minha heroína. (Redação vencedora do prêmio da Unesco)

*Nome fictício para preservar a identidade da entrevistada

Fonte: Agência Brasília

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Valeska Andrade

Formada em História pela Universidade Federal do Ceará e em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará. Especialista em Cultura Brasileira e Arte Educação. Coordenou o Programa O POVO na Educação até agosto de 2010. Pesquisadora e orientadora do POVO na Educação de 2003 a 2010, desenvolveu, entre outras atividades, a leitura crítica e a educomunicação nas salas de aula, utilizando o jornal como principal ferramenta pedagógica. Atualmente, é professora de história da rede estadual de ensino. Pesquisadora do Maracatu Cearense e das práticas educacionais inovadoras. Sempre curiosa!!!

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