Se você pensa que casamento infantil é absurdo praticado somente na Índia, faz parte da maioria de cidadãos que – como eu e gestores de muitas instituições públicas – precisa nacionalizar o olhar e mirar para o próprio umbigo. Esta é uma tragédia invisível no Brasil. Pior: “Ninguém está pensando nesta questão”, alerta Alessandra Nilo, coordenadora da Gestos, ONG do Recife voltada para defesa de Direitos Humanos, comunicação e gênero. “Temos dados muito preocupantes e a bandeira não faz parte de nenhum movimento de mulheres, de crianças, dos que tratam da violência, nem dos que pensam em HIV/Aids”, explica ela, que acaba de participar em Nova York do lançamento de campanha das Nações Unidas/Unicef preocupada com o combate a uniões precoces.

O perfil brasileiro não repete o dos tradicionais casamentos arranjados por parentes na África, Ásia e Oriente Médio. O fenômeno que ocorre aqui é o da “naturalização” de uma relação de meninos e meninas com parceiros mais velhos. Conta ainda com os fatores pobreza e informalidade. A criança ou adolescente engravida, algumas são obrigadas a casar; outras são seduzidas, violentadas e seguem para morar com o homem mantendo uma cultura machista de “limpar a honra da família”. Há casos em que a escolaridade e a condição social e financeira da criança ou adolescente e família a empurra para essa condição. “O que nós defendemos com a campanha é a desagregação dos dados principalmente dessa faixa etária dos 10 a 14 anos”, diz, repassando o foco das discussões com outros países e fazendo uma relação com os novos objetivos da ONU para o desenvolvimento sustentável. A desagregação tende a escancarar uma realidade mais crua.

Acredita-se que mais de um bilhão de meninas e mulheres poderão ser vítimas de casamentos prematuros até 2030, prevê o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), sendo a maior parte concentrada em 12 países da África, Ásia e Oriente Médio. Em 61 países a taxa de prevalência de casamentos infantis (até 18 anos) é de 20%. São crianças ou jovens que assumem responsabilidades, que se tornam mães e pais muito novos. Nos países em desenvolvimento, uma em cada três mulheres jovens, entre 20 e 24 anos, especialmente nas zonas rurais, casa-se antes dos 18 anos.

No Brasil, uma pesquisa intitulada “Ela vai no meu barco”, baseada no Censo do IBGE de 2010, mostra que 88 mil meninas e meninos com idades entre 10 e 14 anos vivem em uniões consensuais, civis ou religiosas. Realizada pelo instituto internacional Promund, em parceria com a Plan Internacional Brasil e a Universidade do Pará entre 2013 e 2015, o relatório final expõe ainda relatos reveladores sobre o que se passa entre as meninas e meninos imaturos que se unem a homens e mulheres mais velhos. Um deles traz a história de uma menina pobre de 13 anos da periferia de São Luís, no Maranhão, que queria curtir a vida à moda das amigas, que conheceu um homem de 36 anos e com ele foi morar. Aos pesquisadores, disse que, se não fosse esse o seu caminho, estaria prostituindo-se como as irmãs. Outra garota de Belém (Pará) com 12 anos conheceu um rapaz de 19 anos, tendo namorado com ele por três meses até que passaram a dividir o mesmo teto. “Não gostava muito dele. Eu só fui mesmo pelo fato de meu padrasto. Aí, na conveniência nossa, ele me fez aprender a gostar dele”. Cada uma com sua história.

De acordo com o Unicef, o casamento infantil de crianças, adolescentes e mulheres, gênero com maior número de vítimas, é nocivo porque as envolvidas ficam mais propensas a deixar a escola, sofrer violência doméstica, ter complicações na gravidez e parto, contrair HIV e Aids e colabora com a manutenção da pobreza. Esta campanha desnuda um tema necessário.  Sobre o Recife, Alessandra Nilo, da Gestos, enfatiza um dado que pode ser indício do quão existentes são os casamentos infantis na capital pernambucana: “Na faixa etária entre 10 e 14 anos, a gente não consegue reduzir a incidência de gravidez”.

Talvez um pouco da Índia esteja logo ali.

Fonte: Diário de Pernambuco Online

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Valeska Andrade

Formada em História pela Universidade Federal do Ceará e em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará. Especialista em Cultura Brasileira e Arte Educação. Coordenou o Programa O POVO na Educação até agosto de 2010. Pesquisadora e orientadora do POVO na Educação de 2003 a 2010, desenvolveu, entre outras atividades, a leitura crítica e a educomunicação nas salas de aula, utilizando o jornal como principal ferramenta pedagógica. Atualmente, é professora de história da rede estadual de ensino. Pesquisadora do Maracatu Cearense e das práticas educacionais inovadoras. Sempre curiosa!!!

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