O projeto que dispõe sobre o exercício da Medicina, o chamado Ato Médico, volta a ser debatido no Senado Federal, nesta quarta-feira (25), em audiência pública na Comissão de Educação, Cultura e Esporte (CE) solicitada pelo senador Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), relator da matéria.

Cássio espera que a comissão ponha um fim à disputa em torno do assunto. De um lado estão os médicos, preocupados em delimitar muito claramente o que consideram seu espaço profissional. Do outro, os que acham que a pretensão dos médicos é abarcar procedimentos tradicionalmente da seara de enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas e demais profissionais da saúde.

Somente os dentistas ficaram de fora. O texto diz que a lei não os afetará, já que têm atribuições semelhantes às de médicos, como fazer cirurgia e receitar remédio.

– Briga e conflito não resolverão o problema – aconselha Cássio Cunha Lima.

De todo modo, o assunto é polêmico. Tanto que está em discussão no Congresso Nacional há dez anos, quando os então senadores Geraldo Althoff e Benício Sampaio apresentaram projetos de lei para regulamentar o exercício da medicina.

Na primeira vez em que foram votados no Senado, entre 2002 e 2006, os projetos tiveram pareceres diferentes nas duas comissões onde foram analisados. Na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), foi aprovado o parecer do senador Tião Viana, favorável à proposta de Benício (PLS 25/2002), e contra a de Althoff (PLS 268/2002), que confiava ao Conselho de Medicina a missão de delimitar o campo de atuação — uma espécie de cheque em branco para que os próprios médicos definissem suas tarefas, o que gerou discordância dos profissionais de áreas congêneres.

Na Comissão de Assuntos Sociais (CAS), aconteceu o contrário. A relatora, Lúcia Vânia (PSDB-GO), ouviu entidades profissionais de saúde como parte de um debate ao longo de dois anos. Ao final, propôs a rejeição do PLS 25/2002, e concluiu que o projeto de Althoff deveria ser refeito. A CAS, então, aprovou um texto novo, encaminhado para a análise da Câmara dos Deputados em 2006.

O que está em questão agora, no Senado, é o texto aprovado pelos deputados em 2009, após três anos de debate e votações em quatro comissões e no Plenário.

A polêmica

O Ato Médico enumera as tarefas que cabem unicamente aos médicos, e quais podem ser compartilhadas com outros profissionais. O texto diz, por exemplo, que só o médico pode aplicar anestesia geral, fazer cirurgia, internar o doente, e dar alta. Por outro lado, permite a outros profissionais tarefas como aplicar injeção, fazer curativo e coletar sangue.

Mas também afirma que só o médico pode diagnosticar uma doença e decidir sobre o tratamento. Por isso, os demais profissionais acusam os médicos de tentar usurpar atribuições que caberiam a eles também, em prejuízo inclusive dos pacientes.

– Certos setores da medicina são prepotentes. Acham que os outros profissionais devem se subordinar a eles. Acreditam ser os únicos capazes de cuidar dos pacientes — reclama o presidente do Conselho Federal de Psicologia, Humberto Verona.

Como o Código Penal considera crime exercer a profissão de médico sem autorização legal, o que pode resultar em pena que chega a dois anos de detenção, os não-médicos também temem ser presos por desempenhar seus ofícios.

Na avaliação de Élida Hennington, médica sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz, os dois lados empregam todas as munições porque a regulamentação de uma profissão garante “controle de mercado” e “blindagem contra a invasão de outros profissionais”.

— Mas essas profissões não podem nunca esquecer que nenhuma delas é suficiente para enfrentar sozinha toda a complexidade da saúde humana, observa.

Tribunais

As entidades representativas dos profissionais de saúde prometem recorrer ao Supremo Tribunal Federal, caso o Ato Médico seja aprovado como está. Já promoveram até protestos de rua, estão presentes em todos os debates realizados no Congresso e se mobilizam na internet.

A presidente do Conselho Federal de Fonoaudiologia, Bianca Queiroga, acredita em “interesses mercadológicos” a mover os médicos, que, segundo ela, desejam um campo de trabalho mais amplo.

Caso esse objetivo seja atendido, alerta o presidente do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Roberto Mattar Cepeda, os médicos acabarão com a multidisciplinaridade nos hospitais, ao impedir que as decisões sobre o doente sejam tomadas em conjunto por médico, fisioterapeuta, psicólogo e nutricionista, por exemplo. A palavra final, ele teme, caberá sempre ao médico.

Os médicos argumentam que, com o Ato Médico, querem apenas impedir que outros profissionais invadam a medicina, colocando pacientes em risco.

O presidente do Conselho Federal de Enfermagem (Cofem), Manoel Carlos Neri responde que os enfermeiros têm, sim, “competência legal e técnica” para receitar remédios. A lei que regulamenta a enfermagem, de 1986, já afirma que o enfermeiro de uma equipe de saúde pode receitar “medicamentos estabelecidos em programas de saúde pública e em rotina aprovada pela instituição de saúde”. E, segundo ele, isso permite à rede pública atender mais gente.

— O problema do Ato Médico é que, em vez de tratar só dos médicos, cuida das outras profissões. Mas elas já estão regulamentadas. É um espelho da arrogância dos médicos. Em países desenvolvidos, os enfermeiros até aplicam anestesia. Aqui, de tão corporativistas, os médicos jamais permitiriam isso — diz Neri.

O presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Roberto d’Avila, não aceita o argumento. Para ele, enfermeiro com prerrogativa de médico só faz sentido em países miseráveis da África, onde é extrema a escassez de médicos e a população vive rodeada de epidemias mortais. Esse não é, diz d’Avila, o caso do Brasil:

— Deixar que enfermeiro diagnostique e trate coisas menores, como pneumonia, otite e meningite, é fazer medicina de pobre para pobre. Quem tem dinheiro é atendido por médico no hospital privado, mas quem é pobre é atendido por qualquer um no posto de saúde. Para o gestor público, é ótimo, porque gasta menos dinheiro. Para nós, é absurdo. Denunciaremos sempre.

Temores

No entender da senadora Lúcia Vânia, o temor dos profissionais que não são médicos é “descabido”. Ela ressalta que os deputados fizeram mudanças no texto aprovado no senado, mas não mexeram nas linhas centrais da proposta, preservando os cuidados tomados pelos primeiros relatores.

— Fazia sentido no passado. O projeto foi redigido por um médico [Althoff], teve um médico como primeiro relator [Tião Viana] e fazia reserva de mercado para os médicos. Os demais profissionais, com razão, entraram em pânico. Mas as falhas foram reparadas. Se há preconceito hoje, é por culpa do projeto original.

O senador Antonio Carlos Valadares (PSB-SE) concorda. Relator da proposta na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, responsável por aprovar o substitutivo da Câmara, no dia 8 de fevereiro, ele garante que a versão atual resguarda todas as profissões:

— Não vai ter médico com tarefa de psicólogo nem psicólogo com tarefa de médico. Quem critica é porque não leu. Se leu, não quis enxergar.

Valadares rejeitou modificações polêmicas feitas pelos deputados, e resgatou partes do substitutivo da senadora Lúcia Vânia. Ele manteve, por exemplo, como privativa dos médicos a “formulação de diagnóstico nosológico”, para determinar a doença, mas retirou essa exclusividade para diagnósticos funcional, psicológico e nutricional, além de avaliação comportamental, sensorial, de capacidade mental e cognitiva.

Após a votação da Comissão de Educação, o texto aprovado pela Câmara dos Deputados (SDC 268/2002) ainda terá que passar pela Comissão de Assuntos Sociais. Depois será votado no Plenário do Senado, e somente então seguirá para sanção presidencial para entrar em vigor.

Da Redação com informações de Ricardo Westin, do Jornal do Senado

Agência Senado

(Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

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Jorge Brandão

Fisioterapeuta, Osteopata, RPGista. Diretor da clinica Fisio Vida.

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