Arcelina Dias, escritora, fala sobre o lançamento do livro Memória de Libertação. (Foto: Mateus Dantas / O POVO)

Por Ana Mary C. Cavalcante (anamary@opovo.com.br)

Memória e Libertação, novo livro da escritora Arcelina Dias, será lançado em Fortaleza, hoje (14). A história da luta por terra, na Prelazia de São Félix do Araguaia, une-se a uma série de narrativas sobre os excluídos

Em 1999, a jornalista paulista Arcelina Helena Publio Dias, 74 anos, se aposentou e iniciou uma peregrinação pelo mundo, que contaria 500 dias com os excluídos. Pouco tempo antes, ela havia perdido o filho único e se mudava de Brasília para o Mosteiro da Anunciação do Senhor, em Goiás. Precisava refazer caminhos, religar sentidos. A espiritualidade foi iluminando a si mesma, de dentro para fora, ao mesmo tempo em que lhe levava ao encontro com as dores e as alegrias dos mais pobres.

Assim, dia após dia, a escritora soma as narrativas da exclusão em uma série de livros sobre misérias e lutas – da África à China, passando pelas Américas. Memória e Libertação (Editora Ave-Maria), que Arcelina lança, nesta terça-feira, 14, em Fortaleza, é parte dessa trajetória. O livro conta a luta dos habitantes da Prelazia de São Félix do Araguaia pela posse da terra durante a ditadura militar. A história é conduzida pelos 12 murais do padre e pintor espanhol Cerezo Barredo, pintados entre 1977 e 2001 e tombados em 2004, que figuram nas igrejas de sete municípios da Prelazia.

No lançamento em Fortaleza, Arcelina Dias volta a percorrer memória e libertação desse povo, em uma palestra. Nesta entrevista ao Leituras da Bel, conduzida pela jornalista Ana Mary C. Cavalcante, a escritora embarca em uma nova travessia pelos caminhos que vem palmilhando há quase 20 anos.

Leituras da Bel – Peregrinar significa chegar a algum lugar? A senhora que chegar onde?
Arcelina – Peregrinação, como a gente entende no Brasil, é ir a um lugar de espiritualidade, seja em um templo budista, seja Juazeiro do Norte, seja Nossa Senhora Aparecida… Onde aconteceram milagres, uma expressão grande da vivência espiritual. E Jesus falou: ondem estão os pobres, aí estou no meio deles. A gente esquece um pouco a visão do próprio Cristo, que se fez pobre. Eu vou procurar essas pessoas.

Leituras da Bel – Em suas peregrinações, a senhora tem se hospedado em casas de famílias simples e que desenvolvem trabalhos solidários. Que bens a senhora tem encontrado em um mundo tão conturbado? O que ainda há de humanidade no homem?
Arcelina – (pausa) Muitas histórias. (pausa) Por exemplo, na África, numa favela que era a maior de Nairob – e as favelas da África, se comparadas as do Brasil, são anos-luz mais pobres, mais carentes, mais tudo. Mas são habitadas por humanos. E eu fiquei com padres combonianos que moravam na mesma situação. Tinha um banheiro para cada 17 famílias: um buraco no chão, com uma tela em volta, onde faziam cocô e xixi. Não tinha sistema de encanação. Na favela, são pessoas que vieram, principalmente, da roça pra ganhar dinheiro na cidade e viviam aquela miséria. Então, estou lá com os padres, passando alguns dias e vou falar uma situação bonita, humana. Eu sempre tinha moedinhas, balinhas no bolso porque lá é muita, muita criança. E, quando elas viam branco, falavam: “Money, money!”. Um dia, eu já tinha dado todas as balinhas e veio uma criança. Boto a mão no bolso, acho uma. Chamei o menorzinho deles e dei para ele. Ele deu pro mais velho. O mais velho abriu a balinha, botou em cima duma pedra, picou a balinha e deu um pedacinho pra cada um.

Leituras da Bel – Em um encontro, trazemos o outro conosco. Hoje, aos 74 anos, a senhora é feita de quem?
Arcelina – (pausa) Acho que sou feita da minha experiência de vida. Todos somos feitos do que a gente viveu, do que acreditou, sofreu, riu. A vida é bela, né, por pior que seja.

Leituras da Bel – A senhora diz que a vida é bela e conta sua vida sorrindo. Contar a vida, depois de certo tempo, é também redimi-la. Qual o maior perdão que a senhora deu para sua vida? Qual o maior perdão dado para si mesma?
Arcelina – (pausa e suspiro) Primeiro, perdoei a mim mesma pela vida e morte do meu filho. Isso era muito importante pra mim: perdoar a mim mesma. Porque, por mais que você tenha feito tudo, carrega uma culpa, você perder um filho com 20 anos… Não sei se a morte dele teve alguém mais envolvido, com certeza, teve os traficantes de drogas. Para mim, estão perdoados. Não que eu os ame, quero que eles acabem, mas conseguiria falar com esses caras que estão presos como seres humanos, trataria eles como seres humanos. Hoje, trabalho na chácara de recuperação (de dependentes químicos), dou aulas de yoga. E tudo isso é um trabalho de perdão.

Serviço
Memória e Libertação – o livro da jornalista aposentada Arcelina Dias será lançado nesta terça-feira, 14, em Fortaleza, no Auditório Centiser (rua Carlos Vasconcelos, 2602, Joaquim Távora). Inscrições para a palestra: alimentos não perecíveis. Informações: 3246.9627.

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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