Ela enxerga por um buraco de fechadura. As dificuldades com a visão fazem Maria Valéria Rezende, escritora brasileira nascida em 1942, em Santos, litoral de São Paulo, ler apenas nos suportes digitais. Ela diz que já habitava o mundo antes de existir a Penicilina ou da Bomba de Hiroshima ter sido detonada. Adaptou-se, então a todas as transformações, conheceu muitos continentes, falou muitos idiomas, usou a internet antes de muitos. Autora de livros com Vasto Mundo e O voo da Guará Vermelha, ela conquistou leitores e seguidores desde quando começou a publicar ficção, em 2001. Já contabilizava 60 anos de idade e possuía consolidado trabalho no campo da educação popular. Ao O POVO, em entrevista realizada durante a XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, ela falou sobre essas e outras questões. “A impressão que eu tinha, quando era criança, era de que em certa idade todo mundo escreve um livro”, diz Maria Valéria.

Maria Valéria Rezende

Entrevista com Maria Valéria Rezende

Leituras da Bel -A senhora já recebeu muitas honrarias – incluindo o Prêmio Jabuti e o Prêmio Casa de Las Américas. Pensa nisso quando está escrevendo?

Maria Valéria Rezende – Eu não penso nisso. Eu penso só “quem será que vai ler isso?”. Desde a primeira linha, eu estou dialogando com alguém. E muitas vezes já me perguntaram quem é o meu leitor imaginaram. É o meu personagem. Pessoas sobre aquelas que eu estou escrevendo. Isso é o que me importa. Recebo todo dia mensagem, pelo Facebook, de alguém que leu espontaneamente e quer falar sobre o livro. Isso para mim é mais importante do que os prêmios. Os prêmios acho que é uma sorte. Se mudar uma pessoa no júri, muda o resultado.

Não existe fita métrica para medir a qualidade literária. Hoje com a liberdade de estilo que se têm, a variedade de coisas que se produz, muito maior do que parece. Todo dia levo o susto de descobrir um novo escritor e uma nova escritora. Às vezes, novo para mim, pois já está publicando faz tempo, mas é de outra região e não tem a veiculação que é dada a nível nacional. Eu acho que os prêmios acontecem, por acaso. Um dos meus livros que é mais lido, mais comentado, que tenho mais penetração entre os leitores é O Voo da Guará Vermelha – que nunca foi premiado. Mais do que os meus livros premiados! É sorte. Claro que fico contente ao receber o prêmio, pois vai me conquistar mais alguns leitores. Quando eu escrevo não estou pensando em ganhar prêmio. Aliás, quando comecei a escrever nem tinha tanto prêmio.

Leituras da Bel – E a senhora começou a publicar ficção aos 60 anos…

Maria Valéria Rezende – Minhas publicações de ficção, pois eu já havia escrito e publicado muita coisa antes no campo da história e da educação popular. Eu sempre escrevi. Não é que comecei a escrever com 60 anos. Eu comecei a publicar ficção. E mesmo escrever ficção era um divertimento. Eu nasci em famílias que tinham escritores, tanto do lado do meu pai quanto do lado da minha mãe. Escrever livro parecia uma coisa normal que iria acontecer na vida de todo mundo. A impressão que eu tinha, quando era criança, era de que em certa idade todo mundo escreve um livro. Eu já fazia meus livrinhos. Toda a vida, escrevi. Mas não fiz disso profissão.

Me dediquei à educação popular, que também implicava em escrever o tempo todo. Mas eu escrevia cordel para poder trabalhar com o pessoal. Tive que aprender e me entranhei pelo sertão. Já dizia que dia de feira não era para marcar reunião, pois passava o dia inteirinho atrás dos cantadores e dos cordelistas – até aquilo entrar na gente. E você depois, sente. Tanto que o meu próprio livro O Voo da Guará Vermelha é todo em ritmo de cordel. Não tem rima necessariamente. Mas aquilo se tornou natural. Pois no fundo corresponde também à respiração da gente. Eu sempre escrevo pensando: “quero que os meus personagens possam ler e se encontrar”. E como só escrevo sobre personagens populares e pessoas que existem. Nunca escrevo sobre uma pessoa determinada que se transforma em personagem. São sínteses de várias pessoas que encontrei, convivi e convivo.

Leituras da Bel – Falando sobre seu movimento de vinda para o Nordeste…
Maria Valéria Rezende – Foi um pouco mais comprido esse movimento. Sai de Santos e fui para São Paulo, para estudar. Aí fui para o Rio de Janeiro. Fiquei viajando pelo Brasil inteiro durante três ou quatro anos. Aí voltei para São Paulo e passei dez anos. Em certa altura tive que sair de São Paulo. Era em plena Ditadura Militar, 1971 e 1972. Fui para a Europa, pois a minha congregação me chamou e me levou. Eu não quis ficar. Quis voltar. Fiz uma volta ao mundo para chegar aqui. Fui para os Estados Unidos, para o México. E no fim de 1972 acabei chegando aqui no Nordeste.

Leituras da Bel – E a senhora se considera nordestina?

Maria Valéria Rezende – Absolutamente. Eu vivi mais da metade da minha vida em Pernambuco e na Paraíba. E pelo Nordeste todo. Depois, a gente criou uma escola de formação para educadores populares. Eu vivia percorrendo do Maranhão à Bahia, para lá e para cá, vários anos. É a minha terra. E Santos é mais parecido com o Nordeste do que São Paulo ou qualquer outra coisa. É à beira mar. Muita gente do mundo inteiro vive lá.

Leituras da Bel – A senhora se incomoda com a identificação de “a escritora freira”?

Maria Valéria Rezende – Eu acho que esse negócio de ser freira me dá um certo destaque, pois é uma esquisitice. As pessoas prestam mais atenção, tem uma curiosidade maior para saber o que a freira escreve. A imprensa sempre diz que eu sou “freira” ou “ex-freira”. Tem gente que acha que freira é uma pessoa bobinha. Como poderia escrever livro e ganhar prêmio? Acham que a freira é um boboquinha que não conseguiu marido e foi pro convento se refugiar. O que não é verdade. A gente fez uma opção por estar a disposição dos apelos de Deus através dos pobres.

Leituras da Bel – A educação popular é a pauta que moveu seu processo estético?

Maria Valéria Rezende – E continua movendo. No fundo, o tipo de literatura que eu escrevo é consequência disso. Foi uma opção muito clara, da minha parte, desde a adolescência, de me dedicar a educação popular. Eu tive a sorte bastante grande de ter contato com o Paulo Freire quando era estudante, antes dele ser exilado. Fui para o Chile e fiz um longo curso com ele, passei uns meses fazendo estágio quando ele estava refugiado. Depois me encontrei várias vezes com ele pelo meio do mundo. Tive anos trabalhando no campo a partir da visão do Paulo Freire que me marcou desde o fim da minha adolescência – no tempo de faculdade. O pessoal fala muito do método Paulo Freire muito ligado com alfabetização. Não se trata só disso. É uma filosofia de educação que vai muito mais longe do que um método de alfabetização. É toda uma maneira de trabalhar o conhecimento popular e a partir dele fazer um diálogo quando for necessário e útil com o conhecimento acadêmico. Foi isso que eu fiz a vida toda. E continuo fazendo muitas vezes.

Leituras da Bel – Seu discurso também é permeado pelos períodos de exílio e ditadura. A senhora tinha medo de morrer e de ver as pessoas morrendo?

Maria Valéria Rezende – Eu não percebia que eu tinha medo. O que eu tinha era uma gastrite horrorosa. Parecia úlcera de estômago, naqueles primeiros anos, de 1969 até 1971. Foi o pior. Eu não percebia que eu tinha medo. Era muito tranquila. Só percebi que aquela gastrite era o meu modo de expressar o medo quando eu fui para fora do Brasil. Depois de uma semana não tinha mais gastrite nenhuma. E aquilo ali era o meu medo. E a partir daí, eu nunca mais tive medo. Sabe aquilo de o coração disparar e ficar paralisado? Nunca. Jamais.

Leituras da Bel – Estamos vivendo um tempo turbulento e falamos muito em intolerância religiosa. Como a senhora tem observado essa movimentação?

Maria Valéria Rezende – Eu acho que isso tudo é provocado. Um povo unido jamais será vencido. É uma estratégia dividir o povo. Além das estratégias particulares de enriquecimento que tem as diferentes lideranças. Hoje cria-se uma empresa religiosa em duas horas. Vai no cartório, registrar um nome qualquer, aluga um espaço, coloca um microfone e meia dúzia de cadeiras. Faz uma igreja! Não paga imposto! Como as pessoas estão muito pressionadas por uma realidade dura, muito confusas e com vozes dissonantes que vem de todo lado, na hora que você oferece certezas e fórmulas para resolver os problemas, você atrai muita gente. E adquire poder sobre essa gente. E tem de todas as tendências religiosas. Existem os evangélicos, mas também dentro da Igreja Católica há setores radicais que também fazem o mesmo tipo de influência e de construir coisas meio fora da realidade para a pessoa ter a ilusão que ela tá protegida, sempre em troca de muita doação.

Acho que a dificuldade que se tem para ler o mundo hoje faz com que as pessoas tenha medo e procurem certezas. É muito difícil viver na incerteza fazendo escolhas arriscadas. Algumas pessoas procuram certezas, que não se podem ter. Quem estiver disposto a vender certezas, se dá bem com uma parte das pessoas. Isso também acontece na base da comparação com os outros. A gente tem que lutar pela tolerância, pois a intolerância vai rachar toda a população em pedacinhos fragmentados. O mundo está muito complexo para a gente querer resolver alguma coisa sozinho. Nós precisamos de todos nós, precisamos da capacidade de sonhar, imaginar e criar de todo mundo. É um desafio enorme. Mas eu sou otimista. Estou aqui desde antes da bomba de hiroshima, desde antes da penicilina. E eu ainda estou aqui.

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Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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