Artista Fernanda Meireles. (Foto: Floriza Rios/Divulgação)

O livro Transforme isto em outra coisa, produção da escritora Naiana Gomes sobre a trajetória da artista cearense Fernanda Meireles, será lançado no próximo sábado, 1º de abril, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, às 17 horas. A entrada é gratuita e a publicação será comercializado por R$ 80. O Leituras da Bel publica na íntegra a apresentação do livro, escrita pela jornalista Janaína Pinto. Leia a seguir:

Guanabara, um domingo de dezembro em 2016.

Bravas pessoas desbravadoras das Cidades Solares,

Vez em quando – muitas vezes – vem o desejo de enxergar as coisas pelos olhos da Fernanda Meireles. Desconfio que não sou a única pessoa a experimentar esse comichão. O começo da satisfação dessa coceira-vontade, cuja realização seria impossível em condições corriqueiras de temperatura e pressão, eu gozo sempre quando a encontro. É uma de suas inúmeras alquimias: para (quase) ver as coisas como ela vê, basta receber dela um de seus caprichados abraços.

O que torna possível dizer que a primeira obra dela é ela mesma: uma matriz de experimentações e amorosidades urbanas. Em uma conversa madrugueira com o professor Tiago Coutinho, chegamos à conclusão de que a Fernanda é uma vida-obra. Adiciono por minha conta que é uma vida-obra-casa. Sem paredes.

O elemento casa é talvez o que me seja mais sedutor. Através das obras da Fernanda Meireles, é possível imaginar e viver Fortaleza como as Cidades Solares. É uma invenção dela – realizada por cartas, zines e principalmente trajetos. Entretanto, depois de um tempo de convívio com a vida-obra-casa, torna-se uma invenção nossa. Um pacto velado. Uma casa itinerante sem paredes no meio da cidade. Uma casa que é (também) uma cidade.

Diferente da cidade-aldeiota, as Cidades Solares desejam as periferias, as conversas libertárias nos faróis autônomos, os encontros fora dos carros, as construções para além dos cânones. Portanto, não é possível falar da Fernanda sem sair por aí catando invencionices que ela arteiramente poliniza pela Metrópole estendida. Adesivo, zine, canção. Postal, carta, pixo, feira. Oficina, estêncil, maleta, fotografia. Quadro, loja, rede, letras. Carona, rabisco, ocupação.

São as pequenas coisas, espalhadas pelo tempo-espaço – e assim amontoadas na procura de um sentido delas – que começam por revelar que a maneira mais eficaz de dar conta de Fernanda Meireles é com um abraço mesmo, porque são muitas as miudezas desse projeto de cidade. A porta de entrada da revolução Cidades Solares é o afeto.

E Naiana Gomes é a mulher das miudezas e dos abraços à cidade. A cada dois minutos, ela se encontra em frestas de edifícios, flores secas na calçada, estatuetas enlodadas, esboços de riso e silêncios. A mandíbula chega a cair de espanto com a rua. Desde a Naiana, as descobertas rotineiras e citadinas são grandes ocasiões: ela confia no sensível.

Tem um tempo que é o da Naiana. Tem um espaço que ela constrói ao redor deste tempo, para protegê-lo dos dissabores de uma sociedade desamparada por viadutos e shoppings. Ela o constrói caminhando, pedalando e deixando-se permanecer ao ar livre e salobro.

A Naiana caminha, pedala e mergulha pela cidade.
A Fernanda caminha, pedala e mergulha pela cidade.
É por essas e outras que as Cidades Solares existem.
Lembra? É um pacto.

Então essas linhas da Naiana começam como uma coletânea amorosa de inobservâncias urbanas em torno da Fernanda, mas são bem mais. São uma carta de amor à Fortaleza possível e ao desbunde de uma existência poética, afetuosa e combativa. A existência de uma artista que se doa com profundidade em cada pedaço espalhado de si.

“É preciso aprender a falar com estranhos” é um carimbo que a Meireles leva por onde passa, mas é também um manifesto. “Transforme isso em outra coisa” é outro dizer que ela carimba por aí, mas é, ainda mais, um modo de vida. A representação de felicidade da Fernanda é um relógio analógico sem ponteiros e isso são riscos no papel, mas é também uma visão de mundo.

Portanto, pode ser que a vida-obra-casa passe despercebida por algumas pessoas, que não conseguem discernir que, quando a Fernanda pedala, aquela é uma casa sobre rodas. E é também uma irmã sobre rodas. Um manifesto, um modo de vida, uma visão de mundo. Isso jamais passaria alheio pelas bilas dos olhos da Naiana.

O esforço deste livro, que li sem freio e cheia de sorriso, não poderia vir em hora mais urgente. Nossa obra é nossa vida. Nossa luta é nosso afeto. É preciso lembrar sempre. Qual espaço urbano criamos? Qual sociedade queremos? De onde me sento a contemplar, viver e amar as Cidades Solares, vejo essas duas menines como um corpo só, uma fusão de gargalhadas, bibliotecas, praias e ruas. Tremeluzentes construtoras de memórias e foguetes. Fortaleza, dentro, dança.

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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