Os integrantes do Clube de Leitura da Confeitaria Sublime tiveram um encontroespecial  com o escritor Valter Hugo Mãe. Durante meses, eles realizaram campanha nas redes sociais convidando o autor de “A máquina de fazer espanhóis” para um café! O escritor veio ao Ceará para participar da XII Bienal Internacional do Livro, que segue até 23 de abril no Centro de Eventos. É a história é narrada por João Paulo Matos, frequentador do clube e leitor assíduo de VHM. Confira! 

E por que não o sonhar junto, então?
“Os livros servem para unir as pessoas. Se não servirem para isso, serão eventualmente inúteis”, disse Valter Hugo, em sua primeira fala, na Bienal. E eis que seu O Filho de Mil Homens cumprira a missão: compusera, com sua ternura, um encontro de almas, que compartilharam uma mesma pulsão, um pulsar, uma contemplação: perfilou-se ali um grupo que se encontrava na literatura e que, nela, se fazia adotar por aquele Mãe.


Quando da notícia da sua vinda por ocasião da Bienal, fez-se o sonhar junto – provavelmente ideia de Larissa, “doida e linda” -, então: por que não convidar Valter Hugo Mãe para tomar um café e prestigiar o Clube de Leitura que, mesmo inconscientemente, ajudou a desenhar?

E, assim, começou-se o desenrolar: uma reunião, algumas fotos, postagens nas redes sociais dos integrantes, uma publicação no jornal, mais umas postagens, um dar-se por perdido. Por final, a resposta: ele viria.

Valter Hugo Mãe e a mediadora Cleudene Aragão durante o diálogo. (Foto: divulgação/Secult)

À véspera do encontro, a antecipação: circulando pela Bienal, um Valter Hugo muito mais humano do que eu jamais imaginara. Sentou-se no chão, fez um boomerang – o primeiro de sua vida -, e brincou, como o velho amigo que era, mesmo sem o saber. E mostrou-se, também, surpreendentemente grato àquelas pessoas, não só pelos livros que encheriam um carro de mão, mas sobretudo e também pelo afeto, que ele espelhava como um cristal. Afeto que ele retribuiu tornando-nos seus convidados pessoais à fala que ocorreria logo mais.

Neste momento, já se podia perceber o quão poético era seu falar. Ao descrever a forma como lidava com a solidão e como precisara, desde sempre, das palavras para compor a ausência, emocionou não só ao Clube de Leitura que acolhera, mas a todo um auditório lotado: os suspiros se faziam ouvir, como a tecer o ar um fio que unia a todos. Para além, a “crisostomização” trouxe consigo, certamente, uma resposta aos anseios mais íntimos daquelas pessoas. Um estado de graça.

Na manhã do dia seguinte, o encontro. Tudo pronto. A espera cronometrada, uma apreensão. E Valter Hugo Mãe chega, numa simplicidade quase emudecedora, deixa a poltrona – mais vistosa – que lhe reserváramos para a amiga que o acompanhava. Todos se acomodam. Sobra um lugar, exatamente ao lado dele. Resto apenas eu, de pé. “Por que você não quer sentar ao meu lado?”. Um convite que não se poderia nunca negar. Uma emoção com que não sabia lidar.

Havia toda uma série de mimos que lhe havíamos preparado. Mas ele, mais uma vez, nos surpreende: traz consigo uma série de ilustrações suas, uma para cada um, num envelope nominado. E, mais, presenteou a confeitaria, casa do Clube, com um enfeite de parede: uma andorinha portuguesa.

Presente recebido pelo João Paulo.

E, da descontração gerada, deu-se a poesia em forma de conversa. O escritor parece perpassado por uma falta – que também já havia matizado sua fala no dia anterior na Bienal e se fez presente na sua conversa da tarde de domingo com Marcelino Freire -, que aparentemente tenta preencher com lirismo. É assim ao falar do pai: “A ausência do morto é muito diferente do simples não existir” – ou algo assim, pois que, comovido como estava, não me conseguiria lembrar exatamente; ao falar dos amigos, para quem dedicara uma série de poemas dos quais já não gosta mais tanto, pois que as pessoas lhe saíram da vida; ao falar da organização de sua casa, dos objetos que são presenças, pedaços de alguém – e, esperamos, dentre os quais haverá agora um pedaço nosso, pretensão demasiada, talvez. Perguntamo-lhe, também, como lhe tinha ocorrido a composição de Crisóstomo. “Eu queria ser melhor”. Essa foi basicamente a resposta: o personagem era uma espécie de lembrança de tentativas de sempre ser melhor, de ser algo melhor para o mundo. Mal sabia ele que, além de fazer a si, estava fazendo a outros tantos muito melhores.

Ao longo de sua fala, nos unia uma mesma expressão facial, que deixava transbordar – além de algumas lágrimas – o afeto ali gerado por aquela presença, por aquela visão de mundo compartilhada, por aquela empatia pela bondade, pelo outro, pelo deparar-se com o mundo e sair disso ainda crendo em algo. Todos estávamos nitidamente emocionados. Ele, inclusive. Foi notória sua dor ao narrar o dilema vivenciado, quando dos últimos momentos em vida de José Saramago. Este lhe vinha pedindo que enviasse um exemplar de A Máquina de Fazer Espanhóis. “Ora, eu não poderia mandar para Saramago, aos 86 anos, já muito doente, um livro que falava de um senhor de 84 anos, muito doente, já morrendo, ou quase morrendo”. E não enviou. Soube, posteriormente, por Pilar Del Rio, que, não obstante, A Máquina fora o último livro lido por Saramago, que, segundo ela, disse ter vivido um pouco mais para poder terminar a leitura. Penso que todos engolimos aí o mesmo nó.

Obviamente, depois de ungidos pela presença poética de Valter Hugo, fomos fãs. Tiramos – mais – fotos, autografamos pilhas de livros, fizemos mais boomerangs – sim, ele gostou muito disso. Sim, tomamos nosso café também. E foi tudo surrealmente lindo. Não, não foi. Ainda está sendo, a sensação não se dissipou. E, para além disso, restou a beleza do encontro, a certeza da busca pelo ser melhor, a gratidão pela literatura como forma desse encontro possível, desse compartilhar de vozes. Valter Hugo Mãe não veio nos visitar. Ele na realidade já estava. Hoje foi uma constatação. Ele já estava. E permanecerá. Pois que, então, sonho que se sonha junto é realidade. Por que não?

Texto de João Paulo Matos/Especial para o Leituras da Bel

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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