Arte: Carlus Campos

Por Sarah Ipiranga*

A contribuição de Adolfo Caminha para a literatura mantém-se atual e pertinente. Com o olhar penetrante e incisivo que teve para realidade do século XIX, transpôs para sua obra uma visão que avistou mais longe porque limpou o presente dos seus véus. Nada lhe escapou: a hipocrisia social, o arrivismo político, a vaidade acadêmica. Nos romances, escusou-se de retratar a graça das meninas ingênuas ou descrever os crepúsculos encantadores, e preferiu incendiar os textos com a brasa ardente dos desejos encobertos (A normalista), a revelação dos segredos (Bom Crioulo), os descortinamentos dos interesses escusos (Tentação).

No entanto, além dessa faceta de insurrecto, é importante ter sempre na mira da sua atualidade o grande narrador que foi, condição essencial para a permanência. Se levarmos em conta que Caminha faleceu antes de completar 30 e que tem a obra produzida nesse curto período de vida inserida no cânone nacional, percebemos o quanto seu estilo é marcante e revelador do talento.

Apesar de mais conhecido pelos romances, há dois livros que são essenciais para a compreensão da sua trajetória e pelo testemunho que dá do seu tempo: um pessoal, com tom de crítica literária (Cartas literárias) e um relato de viagem (No país dos Ianques). Os dois gêneros não eram férteis no Brasil do século XIX, o que mais uma vez assegura a argúcia do escritor. Ambos de valor testemunhal, aproximam-se dos chamados ‘relatos do eu’, em que o narrador possibilita ao leitor acompanhar os passos da sua formação. Nas cartas, encontramos muitas explicações sobre o seu pensamento intelectual e sua postura enquanto cidadão das letras. Já no relato de viagem, quando o Brasil ainda se derramava nostalgicamente para a literatura francesa e as paisagens europeias, ele nos descortina os Estados Unidos. Ou seja, Adolfo tinha a capacidade de vislumbrar o novo, o que estava mais à frente.

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Veja matéria sobre a obra de Adolfo Caminha

Apaixonado por José de Alencar e por António Nobre, cujo livro Só fez correr a cidade de Fortaleza, Caminha sabia separar a admiração da influência. Respeitando o romantismo dos escritores aludidos, manteve-se fiel ao seu estilo e não cobriu com nenhum véu de palavras a realidade que o acolheu e ‘amordaçou’.

O leitor de hoje, tão cheio, perplexo e aturdido com as milhares possibilidades de leitura, espalhadas por livrarias e sites, pode retornar ao caminho simples de pegar um bom livro na estante com a certeza do contentamento. De Caminha, encontrará poucas obras e delas poucos exemplares. Mas essa ação, a da encontro com o livro, vai trazê-lo de volta à senda da leitura verdadeira, aquela em que se senta com um livro e não se quer mais abandoná-lo. Essa certeza Caminha deixou para nós.

Sarah Ipiranga é professora do Curso de Letras da Universidade Estadual do Ceará e coordenadora do Grupo de Estudos Autobiografia, Memória e Identidade (AMI). Pós-doutora em Literatura Brasileira, doutora em Educação Brasileira e mestre em Estudos Literários .

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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