Por Tetê Macambira*
Orfeu e Eurídice estão apaixonadinhos e vão se casar. Mas uma cobra pica Eurídice e ela morre. Orfeu, inconsolável e sem esquecer sua amada, toma sua lira e desce à mansão dos mortos para buscar sua amada. Canta e pede tão docemente que consegue de Hades, senhor do reino dos mortos, para lhe devolver Eurídice. O resto dessa tragédia remete à descrença que temos no outro.
Também temos em nossa produção nacional um caso de amor impossível: Orfeu da Conceição. Eram dois pombinhos que se arrulhavam docemente juras de amor eterno no morro carioca e tiveram uma tragédia, graças aos ciúmes de terceiros, interrompendo-lhes o amor – e a tentativa de resolver a situação a todo custo.
Essa tragédia carioca em três atos foi escrita por Vinícius de Moraes, em 1954. Encenado pela primeira vez em 25 de setembro de 1956, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com cenários de ninguém mais, ninguém menos que Oscar Niemeyer e encenado pelo Teatro Experimental do Negro de Abdias Nascimento – e foi a segunda vez que um elenco de atores negros ocupava um dos mais famosos palcos do Brasil.
E promessa cumprida, que acabou rendendo adaptação para o cinema: Orfeu Negro (1959) com a direção de Marcel Camus, ganhando a Palma de Ouro de Cannes e o Oscar pelo melhor filme estrangeiro.
E o filme rendeu: Barack Obama, em sua autobiografia, descreve a noite que foi com sua mãe assistir a esse filme. A banda Arcade fire utilizou-se de algumas cenas desse filme em seu clip Afterlife.
Não saciada a fonte, houve nova adaptação (desta vez, brasileiríssima) da peça teatral para o cinema: Orfeu (1999) sob a direção de Cacá Diegues, com Toni Garrido e Patrícia França vivenciando o amor impossível sob a música de Caetano Veloso.
NOTA: Todas as personagens da tragédia devem ser normalmente representadas por atores da raça negra, não importando isto em que não possa ser, eventualmente, encenada com atores brancos. Tratando-se de uma peça onde a gíria popular representa um papel muito importante, e como a linguagem do povo é extremamente mutável, em caso de representação deve ser ela adaptada às suas novas condições. As letras dos sambas constantes da peça, com música de Antônio Carlos Jobim, são necessariamente as que devem ser usadas em cena, procurando-se sempre atualizar a ação o mais possível.
A história ser contada na favela, na década de 1950, era uma audácia. Mais audaciosa ainda por ser extremamente lírica, uma paixão pelos morros e pelo carnaval – a grande festa popular.
Sobre o Ato I
Deliciosos momentos em que Eurídice e Orfeu trocam juras de amor, anseiam pelo dia seguinte, o do casamento deles. Não tem como não se sorrir ao ler as ternurinhas trocadas, as rubricas indicando os afagos feitos e prometidos, separam-se, mas é como se ainda estivessem juntos, de tal forma que um texto lindo demais é o “monólogo de Orfeu”, elogiando a amada, monólogo esse que já foi recitado por Maria Bethânia e que antecipa a música “Se todos fossem iguais a você”, uma lindíssima canção de amor.
“Vai tua vida/ Teu caminho é de paz e amor/ A tua vida/ É uma linda canção de amor/
Abre os teus braços e canta a última esperança/ Esperança divina/ De amar em paz…”
Mira, uma “ex” de Orfeu, vem e tenta Orfeu, ensaia dissuadi-lo do casamento com Eurídice, mas ele resiste (*suspiro*). Hashtag chateada, ela sai furibunda e topa com Aristeu (que arrasta a asa para os lados da Eurídice), com quem confabula. Como resultado, Aristeu apunhala mortalmente Eurídice – na véspera do casamento.
“ORFEU: Eu sou a mágoa, eu sou a tristeza, eu sou a maior tristeza do mundo!
Eu sou eu, eu sou Orfeu!”
Sobre o Ato II
Orfeu, inconformado, quer reclamar sua amada do mundo dos mortos, para tanto, desce. E é carnaval no Inferno (o que não deixa de ser interessante: um inferno católico em uma mansão dos mortos grega). O Inferno é uma escola de samba, em que é feita a apresentação dos instrumentos, típicos do batuque de Carnaval.
Há uma gloriosa batalha musical entre o violão de Orfeu e o batuque do Inferno, comandada por Plutão (seria Hades, para os gregos).
“PLUTÃO: Em nome do diabo, diz o que queres, homem!
ORFEU: Eu quero Eurídice!”
Sobre o Ato III
Volta ao primeiro cenário, o morro. Há comentários do povo sobre a triste situação desoladora de Orfeu. Clio, mãe de Orfeu, está revoltada, uma mãe desesperada por ver seu filho tão abatido.
“CLIO (aos berros): Vaca!/ Prostituta! Cadela! Vagabunda!/
Nasce de novo que é pra eu te comer/ Os olhos!
Sem-vergonha! Descarada!/ Nasce de novo, nasce!”
Como no mito, as mulheres (bacantes), açuladas por Mira, atacam enraivecidas Orfeu por ele manter-se fiel à memória de sua Eurídice, e em uma violência tão sanguinolenta que acabam por matar Orfeu. “Como um Lacoonte, Orfeu luta para desvencilhar-se da penca humana que o massacra. Depois, conseguindo libertar-se por um momento, foge coberto de sangue, com as mulheres no seu encalço.”
O final dessa peça nem chega, provavelmente, a ser um final, mas antes parece prometer uma continuidade. E essa continuidade é a própria vida, que segue.
“CORO – Juntaram-se a Mulher, a Morte a Lua/ Para matar Orfeu, com tanta sorte/
Que mataram Orfeu, a alma da rua/ Orfeu, o generoso, Orfeu, o forte./
Porém as três não sabem de uma coisa:/ Para matar Orfeu não basta a Morte./
Tudo morre que nasce e que viveu/ Só não morre no mundo a voz de Orfeu.”
Porque o que fica neste mundo é o exemplo da vida que você deixar.
Pensando sobre Orfeu da Conceição
Lutar pelo que se acredita, pelo que se ama nem sempre é um processo pacífico, pode atrair inveja, cobiça e reações opostas. No entanto, manter-se fiel a si mesmo, ainda que o destrua, é o que constrói uma vida digna de ser lembrada.
O que o Poetinha enfoca e extrai do mito talvez seja uma mensagem (subliminar?) à resistência negra – sempre necessária. Ou talvez não, apenas à questão de manter-se digno de si mesmo.
De qualquer forma, é uma leitura em que se reúnem poesia, narrativa e musicalidade extrema. Inclusive, muito aconselhável ler a peça ao som de uma das trilhas sonoras.
Porque sempre é importante lembrarmos o que queremos na vida.
*Tetê Macambira é escritora, tradutora, revisora, fotógrafa que nunca aprendeu a sambar.