Por Tetê Macambira*
Poções, feitiços e encantamentos fazem parte do arsenal de bruxas e feiticeiros, em geral. Mas as crendices somam-se à ciência popular e fazem mezinhas milagrosas, na chamada Medicina Popular. E embora ela seja empiricamente usada, inegável que sempre aparece um espertalhão para se aproveitar da fé alheia. Mandrágora, planta endêmica europeia, sofre fama, desde a idade média, de planta mágica, muito pela sua raiz que se assemelharia a um corpo humano, a um homúnculo – principalmente, relacionada à sedução. Deve ter sido o que Maquiavel fez com esta peça teatral: lançou um feitiço, um encantamento com a sedução da raiz da mandrágora sobre o texto produzido, que encanta e permanece atual depois de séculos.
Dizem que Nicolau Maquiavel, autor do famoso livro O príncipe que lhe valeu ter o derivado de seu sobrenome como sinônimo de dissimulado e astucioso, estaria em exílio político em San Casciano, um vilarejo onde nada ocorria. Entediado, divertiu-se em criar esta comédia em cinco atos e que causou um sucesso inesperado, inclusive em religiosos (o que era de se admirar, afinal a peça supercritica essa classe; então fica a dúvida se padres e afins entenderam de fato a ironia contida na peça ou, de fato, nem se importavam mais em manter a ilusão de um bom nome).
Considerada a obra-prima do teatro italiano do século XVI, A mandrágora não desmente a filosofia do autor nem se submete totalmente aos cânones da comédia – antes de divertir, Maquiavel prima pelo asteísmo, uma ironia inteligente e atemporal em que as personagens são tipos característicos, isto é, representam, cada um, um tipo de personalidade e/ou função da sociedade.
Em A mandrágora, de Maquiavel, nada parece gratuitamente colocado, depois de analisado mais aprofundadamente, mesmo que a canção que é reproduzida antes da encenação: “Posto que a vida é breve/ e muitas são as penas/ que vivendo e lidando se padecem,/ seguindo nossas ânsias/ vamos passando e consumindo os anos,/ (…)/ P’ra fugir desta angústia,/ erma existência em bosques escolhemos/ e sempre em gáudio e efstas,/ vivemos, belos jovens, ledas ninfas./Agora aqui viemos, / com a nossa harmonia,/ só para honrarmos esta/ tão bela festa e alegre companhia”.
Proscênio
Embora tem-se em comum acordo que a peça teria sido escrita em 1518, estuda-se a possibilidade dela ter sido concluída quatro anos antes. Publicada em 1524, teve sua primeira apresentação em 1520, na casa de Bernardino di Giordano, com os atores da Compagnia della Cazzuola, com cenários suntuosos, com sucesso estrondoso o que fez com que fosse reapresentada dois anos depois em Veneza – mas desta vez não pôde chegar ao fim, a sla estava muito lotada e extremamente animada.
Efeito esperado, haja vista que até hoje há representações dessa peça: em uma rápida busca agora no Google, acusam-se encenações desse texto – uma em São Paulo que durou de 2004 a 2015 e outra em Itália, “Calatafimi Segesta Festival, em agosto deste ano.
Um texto ser remontado séculos depois não é por acaso.
Vale – muito! – a pena ler.
Cena
Que Deus vos salve, ouvintes meus benignos,/ pois depender parece/ do agrado que eu vos der essa bondade./ (…) / A comédia intitula-se A MANDRÁGORA;/ por quê, nisso dirá/ a representação, tenho certeza./ Não desfruta o autor de muita fama;/ se não rirdes, no entanto,/ aceitará pagar-vos um bom trago./ Um amante infeliz,/ um doutor um pouco astuto,/ um frade de má vida,/ um parasito fértil em malícia,/ hoje serão o vosso passatempo.// Se julgardes o assunto pouco digno,/ por leve em demasia,/ de quem pretende ser grave e sisudo,/ perdoai-o, por isso que se empenha,/ nesses vãos pensamentos,/ em mais brando tornar seu triste tempo/(…)
Um jogo de interesses em conflito e que, para conseguir o intento, artimanhas são elaboradas e postas em prática. Calímaco ouviu falar de uma rara beleza em Florença e para lá se vai a fim de conferir. Era! Lucrécia é mulher que faz o moço desejá-la ardentemente, e sem se importar se ela é casada com Messer Nícia, isso não seria problema! O problema era que Lucrécia era fiel ao marido e fervorosa católica. No entanto, Messer Nícia e Lucrécia não foram abençoados com filhos, o que fazia com que o marido quisesse tentar de tudo. Pronto! Bastou que Calímaco se juntasse ao esperto Ligúrio e fizessem um embuste: um falso médico receitasse a Lucrécia um preparado de mandrágora para engravidar. Só havia um problema: o homem que primeiro se deitasse com ela, depois dela beber o “remédio”, morreria. Para que messer Nícia não sofresse com esse efeito colateral (o homem morreria, mas ela – que tomou o remédio – nada lhe aconteceria!), aconselharam-no a pegar algum rapaz qualquer e fazê-lo ter relações com sua esposa. Convencer Messer Nícia de ser corno nem foi muito problemático, o simples aceitou até bem. A esposa, beata, é que não queria conversa. Entraram, então, no esquema, a mãe da Lucrécia, Sóstrata, para convencer a filha a trair o marido e ainda mandou chamar o padre (com as benditas mãos antecipadamente já recheadas de suborno) para garantir à relutante esposa de aproveitar pular a cerca com o consentimento do marido – e da santa madre igreja católica!
Saber o enredo todo não é tudo; o diálogo, o jogo de palavras usados no texto teatral divertem e encantam com um sarcasmo pontual e preciso.
Bastidores
Mais do que o texto em si e as montagens que têm sido feitas através dos séculos, “A mandrágora” recebeu outras manifestações artísticas. Em 1965, houve uma produção homônima cinematográfica franco-italiana, e em 1980 houve outra versão para o cinema com produção inglesa sob a direção de Malachi Bogdanov (“The mandrake root”), além de adaptações inspiradas nessa peça de mais de 500 anos. incluindo para a H.Q.
Sem contar os estudos acadêmicos feitos sobre essa obra-prima, que têm extraído dessa raiz sedutora as chaves para a filosofia política de seu autor.
Como Maquiavel costumava ler os clássicos, era quase decorrente ele se aventurasse no gênero teatral. Dizem, até, que o papa Leão X, quando assistiu à apresentação , não só aprovou como também parabenizou nosso maquiavélico dramaturgo pela perspicácia do enredo. A peça denunciava de forma meticulosa, embora indireta, todos os hábitos corruptos, vícios e imoralidades de seu tempo.De alguma maneira Maquiavel parecia estar pregando uma peça nos espectadores: o riso era permitido, mas até que ponto não estariam rindo de si mesmos?
Em “O príncipe”, Maquiavel expõe as armas para se manter o poder, independentemente da religião. Em a peça “A mandrágora”, esse mesmo poder é também exercido – embora em menor escala – por homens comuns, e se relacionarmos o protagonista, Calímaco, à situação de governante (pelo menos, da situação) podemos perceber a disposição dele de usar quaisquer meios a fim de atingir seus objetivos:
“Preciso tentar qualquer coisa, seja grande, seja perigosa, prejudicial ou infame. Antes morrer do que viver assim. Se pudesse dormir à noite, se pudesse alimentar-me, se pudesse conversar, se pudesse achar prazer nalguma coisa, teria mais paciência em esperar pelo tempo. Mas o caso não tem remédio. Se alguma decisão não alentar a esperança, é certo que morrerei; e, sabendo que devo morrer, nada me atemoriza mais e prefiro tomar qualquer decisão, ainda que cruel, absurda ou nefanda.”
https://www.youtube.com/watch?v=5TzpqWQB58E
Em Messer Nícia temos a crítica à burguesia ascendente: o exemplo do homem sem virtù (= qualidades; para Maquiavel, “virtù” eram as qualidades – fossem boas ou más, perceptíveis no ser). É uma figura engraçada porque quer ser astuto e malandro e é quem termina por ser o mais enganado.Sua patetice é tamanha e Maquiavel parece ter construído essa personagem para melhor empregar a comicidade em cena, tornando-o uma caricatura da estultice burguesa pagando de sabichona.
Passagem em que Frei Timóteo argumenta com Lucrécia é, certamente, um dos pontos altos da comédia. Dois argumentos religiosos, devidamente distorcidos, sobressaem no meio da conversa. A ideia de que “a vontade é quem peca, não o corpo” implica que ela, não querendo trair o marido não o estaria traindo de fato se somente der o corpo e, além do mais, ela tendo o consentimento do marido deve obedecê-lo em tudo o mais, afinal, “pecado é descontentar o marido”. Não é necessária nenhuma adivinhação para saber que era na igreja que Maquiavel concentrava a sua crítica.
Não esqueçamos que Maquiavel poderia ser um visionário relacionado à política, mas era uma pedra muda e imóvel na questão mulher, assim como o geral da população, à época. Apesar disso, é interessante observar que Lucrécia, sendo uma mulher religiosa e, por isso, fiel ao seu marido, se entrega à sedução torta de Calímaco e estabelece um modo de continuidade para essa traição:
“Já que a tua astúcia, a tolice de meu marido, a ingenuidade de minha mãe e a maldade de meu confessor me levaram a fazer aquilo que, sozinha, nunca faria, quero julgar que tudo provenha de uma disposição do céu, que assim determinasse, e não me sinto suficiente para recusar o que o céu quer que eu aceite. Portanto, eu te tomo por senhor, patrono e guia; é meu pai, meu defensor e quero que sejas todo o meu bem. E aquilo que meu marido quis por uma noite, entendo que o tenha sempre. Procurarás, por isto, tornar-se seu compadre, virás esta manhã à igreja e, dali, depois, almoçar conosco. Dependerá de ti frequentares a nossa casa à tua vontade e poderemos estar juntos a todas as horas e sem suspeitas.”
Mas o mais inovador nessa comédia é o final: sem julgamentos nem punições – apenas uma festa e a promessa do engodo continuar valendo. Ocorre que “A mandrágora” não é uma peça convencional, possui personagens complexos e não dicotômicos, não se separa o bem do mal. Mentir, ser corrupto, entregar-se ao adultério são, a priori, vícios que não devem ser cometidos. Certo. Mas… quem poderia negar que acabamos por nos identificar com as personagens e com suas… hãã… limitações?
Apenas Messer Nicia foge desse padrão vicioso, não percebendo em nenhum momento ser vítima de um embuste. Talvez Maquiavel quisesse mostrar, com essa personagem, que o mundo é duro, cínico e prático onde somente sobrevivem os mais espertos: “um homem que quiser fazer profissão de bondade é natural que se arruíne entre tantos que são maus.”
“Eis a receita para ser feliz:/ nascer tolo e crer tudo o que se diz./ Não se sofre de ambição,/ não se sofre de temor,/ topa-se o bem e o mal, sem distinção.”
Não é à toa, portanto, que Maquiavel ficou conhecido por suas ideias políticas incomuns. É usual atribuir a frase “Os fins justificam os meios” a “O príncipe”, de Maquiavel, mas é uma das lendas literárias. A frase que mais se aproxima é a que diz Frei Timóteo: “Além disso, deve-se, em todas coisas, considerar o seu fim”.
Pensando nessa frase, podemos redimensionar em para que o fim de discutir o poder, a moral e a religião, o meio utilizado pode ser o teatro – tanto lido quanto encenado e assistido.
“A matéria da história é escabrosa/ e talvez não pareça condizente/ com tão culta plateia e nem honrosa/ para alguém que escreveu de boa mente./ Mas se um velho imbecil, um frade astuto,/ um parasito matreiro e corrupto/ irão ser hoje o vosso passatempo, não se culpe o autor e, sim, o seu tempo”
*Tetê Macambira é escritora, tradutora, revisora que entende Lucrécia e já foi um Messer Nícia e ouviu Freis Timóteos na vida e colabora quinzenalmente com o blog Leituras da Bel com a coluna Rubrica, na qual emite notas literárias sobre peças teatrais, defendendo a facilidade de se ler um texto narrativo baseado em diálogos.