Por Tetê Macambira*
Proscênio

ROSA: Pra que serve uma cruz?
Que cada um tem que carregar a sua própria cruz, é ditado dos mais conhecidos. E sempre “damos um jeitinho”: uma almofadinha no ombro, umas rodinhas na cruz, um mp3 recheado com a trilha sonora perfeita e o caminho mais ensombrado que tiver… e pé na estrada!, vamos carregar a nossa cruz. Analogias modernosas à parte, nosso bem-humorado, mordaz e brasileiríssimo Dias Gomes tinha uma excelente noção do peso que uma cruz pode ter – e o quanto ela pode pesar aos outros ao redor de quem carrega sua cruz ciosa e teimosamente. Zé-do-Burro é uma das personagens populares cuja inocência e honestidade límpida ganha nossa rápida afeição… e comiseração. Seus personagens populares geralmente representam funções sociais bem distintas e a interação entre elas é de um equilíbrio delicado e perigoso, podendo irromper a qualquer momento o tênue fio da civilidade. São essas relações sutis que vivenciam um momento histórico mas, que acima da escrita da história sendo feita, são seres humanos em sua eterna problemática de convivência e (des)entendimento mútuos que ganham a boca de cena com as falas que, 50 anos depois, ainda fazem sentido – infelizmente, todo o sentido do mundo.
BONITÃO: E desde quando trabalhar dá direito a alguma coisa?
Quem lhe meteu na cabeça essas ideias? (olha-a de alto a baixo, desconfiado)
Está virando comunista?

Cena
ZÉ (irritando-se): Eu também estou me querendo entender com o senhor e com todo mundo. Mas acho que ninguém me entende. (…)

Zé-do-Burro, acompanhado de sua esposa Rosa, cumpre a promessa, que fizera a santa Bárbara/ Iansã, de carregar uma cruz tal qual a de Jesus pela cura milagrosa de seu burro Nicolau, percorrendo sete léguas (1 légua = 4,82803 km) de seu interior até o altar da santa em Salvador. Mas (toda história tem um “mas”) o pároco da igreja se recusa a receber a paga porque prometida em um terreiro. Além da situação religiosa, adverte o autor na introdução, o foco é a intolerância, a rigidez da ideia e a deturpação do ocorrido pelos outros.

O protagonista cresce em cena como um herói inesperado e relutante, alguém que tenta manter-se fiel aos próprios princípios, sem – no entanto – perceber muito bem as armas da manipulação que começam a agir com e em torno dele.

REPÓRTER: Repartir o sítio… Diga-me, o senhor é a favor da Reforma Agrária?
ZÉ (sem entender): Reforma agrária?!… O que é isso?
REPÓRTER: É o que o senhor fez em seu sítio. Redistribuição das terras entre os lavradores pobres.
ZÉ: E não estou arrependido, moço. Fiz a felicidade de bocado de gente e o que restou dá pra mim e sobra.
REPÓRTER (anotando): É a favor da Reforma Agrária.

O pagador de promessas

A questão religiosa não é crucial, mas a intransigência, o apego excessivo de ambas as partes – tanto da igreja quanto do penitente Zé-do-Burro – é que fomentam o ponto nevrálgico da situação dramática. Cresce de tal forma que a igreja resolve amenizar sem parecer estar voltando atrás em sua primeira decisão retrógrada, mas rebate na teimosia do simples, que apenas quer cumprir a promessa feita na íntegra: deixar a cruz DENTRO da igreja, no altar da santa, ele assume a responsabilidade de sua promessa e insiste em levá-la até o fim.

MONSENHOR – (…) A fim de dar uma prova da tolerância da Igreja
para com aqueles que se desviam dos cânones sagrados…
ZÉ (interrompendo): Padre, eu sou católico. Não entendo muita coisa do que dizem,
mas queria que o senhor entendesse que eu sou católico.
Pode ser que eu tenha errado, mas eu sou católico.
MONSENHOR – Pois bem. Vamos lhe dar uma oportunidade.
Se é católico, renegue todos os atos que praticou por inspiração do Diabo
e volte ao seio da Santa Madre Igreja.
ZÉ (sem entender): Como, padre?!

Essa teimosia, essa obstinação de Zé-do-Burro, surda aos ouvidos dos poderosos, recebe a punição do sistema e acidentalmente (?) é baleado. Respeitando sua fidelidade aos próprios princípios, os capoeiras, igualmente representantes da massa popular, encerram a peça em mudez – só a cena é que cresce na movimentação final.

(…) Mestre Coca inclina-se diante de Zé-do-Burro, segura-o pelos braços,
os outros capoeiras se aproximam também e ajudam a carregar o corpo.
Colocam-no sobre a cruz, de costas, com os braços estendidos,
como um crucificado. Carregam-no assim, como numa padiola,
e avançam para a igreja. (…) Intimidados, o Padre e o Sacristão recuam,
a Beata foge e os capoeiras entram na igreja com a cruz,
sobre ela o corpo de Zé-do-Burro. (…)

https://www.youtube.com/watch?v=IqmUD0nbR9w

Dias Gomes

Dias Gomes iniciou-se cedo na literatura, como romancista e dramaturgo, mas foi  O pagador de promessas que lhe garantiu uma justa visibilidade, embora alguns críticos considerem que ele, Dias Gomes, tenha sido o autor de uma única peça, dado o seu relevo – o que é injusto. Outras peças teatrais suas são tão importantes quanto. “O berço do herói”, por exemplo, que foi proibida à época e depois levada à TV com o nome de “Roque santeiro”, sucesso global.

Peça em três atos, foi apresentada, pela primeira vez, no Teatro Brasileiro de Comédia, em 29 de julho de 1960, sob a direção de Flávio Rangel e tendo nos papéis dos protagonistas Zé-do-Burro e Rosa, os atores Leonardo Vilar e Natália Timberg. Obteve vários prêmios, no mesmo ano e em 1962 quando recebeu também a Palma de Ouro em Cannes, por sua versão cinematográfica (mas com Glória Menezes no papel de Rosa).

Sendo objeto de estudo por vários ângulos, quer seja o psicológico, o sociológico, o dramático ou o literário, O pagador de promessas é um espetáculo ao qual não se pode sair impune após sua leitura ou assistir-lhe. E, como o próprio autor diz, na “Nota do autor” que precede a leitura da peça:

“O homem, no sistema capitalista, é um ser em luta contra a engrenagem social que promove a sua desintegração, ao mesmo tempo que aparenta e declara agir em defesa de sua liberdade individual. Para adaptar-se a essa engrenagem, o indivíduo concede levianamente, ou abdica por completo de si mesmo. O Pagador de Promessas é a estória de um homem que não quis conceder – e foi destruído. Seu tema central é, assim, o mito da sociedade capitalista. Baseada no princípio da liberdade de escolha, a sociedade burguesa não fornece ao indivíduo os meios necessários ao exercício dessa liberdade, tornando-a, portanto, ilusória. Claro, há também a intolerância, o sectarismo, o dogmatismo, que fazem com que vejamos inimigos naqueles que, de fato, estão do nosso lado. Há, sobretudo, a falta de uma linguagem comum entre os homens. Tudo isso tornando impossível a dignidade humana. São peças da engrenagem homicida.

Como Zé-do-Burro, cada um de nós tem suas promessas a pagar. A Deus ou ao Demônio, a uma Ideia. (…) E cada um de nós tem pela frente o seu “Padre Olavo”. Ele não é um símbolo da intolerância religiosa, mas de intolerância universal. Veste batina, podia vestir farda ou toga. (…) O Pagador de Promessas não é uma peça anticlerical – espero que isso seja entendido. Zé-do-Burro é trucidado não pela Igreja, mas por toda uma organização social, na qual somente o povo das ruas com ele se confraterniza e a seu lado se coloca, (…). A invasão final do templo tem nítido sentido de vitória popular e destruição de uma engrenagem da qual, é verdade, a Igreja, como instituição, faz parte. (…)

Mas o que nos interessa não é o dogmatismo cristão, a intolerância religiosa – é a crueldade de uma engrenagem social construída sobre um falso conceito de liberdade. Zé-do-Burro, por definição, é um homem livre. Por definição, apenas. O que nos importa é a exploração de que ele é vítima – exploração que constitui também um dos alicerces da sociedade em que vivemos.”

Para saber mais:
GOMES, Dias, Coleção Dias Gomes – volume 1 – Os heróis vencidos: O pagador de promessas e O Santo Inquérito, coordenação de Antonio Mercado, fortuna crítica por Anatol Rosenfeld e Sábato Magaldi, Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.

*Tetê Macambira é escritora, tradutora, revisora e colabora quinzenalmente com o blog “Leituras da Bel” com a coluna Rubrica, na qual emite notas literárias sobre peças teatrais. E confessa, contritamente, que vive colocando rodinhas na própria cruz.

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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