Ilustração exclusiva da artista Cris Frota para ilustrar o conto de Branca Sobreira

Por Branca Sobreira*

Ela tragava e o mundo ao redor desaparecia. Como era bom esse vício que um dia a mataria. Como era bom ser viciada, amar algo intensamente, mesmo que fosse o cigarro. Esse amor de morrer e matar, ela nunca havia sentido pelo marido. O ex-marido. Nunca acreditaram quando ela dizia que não o havia trocado por ninguém, que apenas queria ficar só. Os filhos já estavam criados, crescidos e agora era a vez dela. A vez dela de fazer o que quiser. Ela passou vinte e três anos dormindo igual a uma pedra para não incomodar o companheiro, não se mexia, quase não respirava, parecia uma múmia, era assim que dormia. E ele roncava, se mexia sem parar. Ela tinha noites terríveis, quase nunca conseguia dormir uma noite completa. Só quando o marido viajava e ela ficava sozinha. Adorava ficar só, adorava ser só. O marido falava “o que você tem hoje que está tão ausente?”. Ela tinha esse dom, parecia flutuar para longe parada no mesmo lugar. Era sua válvula de escape, assim como o cigarro. Quando casou ninguém tinha avisado que seria difícil, que se perderia no outro e talvez não se encontrasse mais. Se encontrava no vício, no cigarro. Nunca sentiu ódio, mas não poupou o homem com quem morou sob o mesmo teto por tanto tempo. Disse seca e crua “estou indo”. Ele não entendeu, achou que era uma brincadeira, só que ela nunca brincava. Sempre séria, com o cigarro e o isqueiro em mãos. Aquela névoa fedorenta sempre pairando no ar. Aquele peso invisível presente. Então ele percebeu que era real, ela iria. Logo se irritou e perguntou “por quem você vai me deixar? Me diga”, ordenou furioso. O olhar gélido da mulher permaneceu. Ela não se importava com ele, e ele sabia, sentia. Seu orgulho fora ferido. Ela nunca se importou, só com o cigarro, que dava sentido a tudo. Seu fiel escudeiro, o cigarro, que dizia sem falar, que tudo estava perto do fim, que ela não deveria se preocupar. Tudo tinha fim.

***

*Branca Sobreira é jornalista, foi repórter e produtora de televisão, e lançou seu primeiro livro de contos ano passado, “20”está atualmente disponível na Amazon e na Livraria Cultura. Hoje morando fora do país está escrevendo seu primeiro romance.

**Cris Frota iniciou seu movimento artístico através das ilustrações e com o amadurecimento do seu estilo transmutou também para as telas, suas influências abstracionistas levaram-na ao uso da técnica definida como color field painting, em meios a tons indecisos às vezes monocromáticos e não representativos. Repleta de muitas referências, não se define em um gênero.

Site: crisfrota.com
Instagram: @crisfrotaa

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Colaboradores LDB

Colaboradores do Blog Leituras da Bel. Grupo formado por professores, escritores, poetas e estudiosos da literatura.

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