Por Kah Dantas*
Eu matei o meu amor no mês de setembro. Usei arma branca, algumas mágoas e uma ferida recém-aberta, essas últimas combinadas em química venenosa e inominável, adicionada ao copo que ia sobre a mesa. Os cachorros uivavam para as sombras lá fora, sentindo o cheiro da morte e prevendo os espasmos de dor. Os meus e os do meu amor.
Aproveitei-me de uma bebedeira. Primeiro, eu o sufoquei até que ficasse inconsciente, minhas lágrimas empapando o travesseiro e toda a força que eu já tive na vida concentrada nas minhas mãos trementes. Quando ele estava desacordado, eu o fiz sangrar pela artéria, ouvindo o seu coração viver pela última vez e enquanto eu acabava de amá-lo.
Tive cuidado para não escorregar, que um amor assassinado sangra mais do que um querer comum ou morto por causas naturais – ou do que nós mesmos, quando ferimos isto que chamamos de corpo.
Arranquei-lhe o maior órgão à faca e deixei para trás o coração, puxando o couro com força, com força, para uma última missão.
Estirei no chão a pele pouca, parecia tanta quando estávamos um no outro!, e comecei a escrever nela, com a tinta vermelha abundante:
“Que triste, amor, que triste amor!
Que nem um poema você me deixou!”
E eu cantei com os olhos inchados das abelhas e de quem enxerga o mundo feito manchas.
Estava feito!
Enterrei os restos em lugar para onde não tem mapa e espantei os fantasmas em ritual com um espelho e alguns palavrões.
Deixei ficar apenas a pele riscada de lembrança, não em homenagem à sua vida e morte, mas à minha voz quando virou canção.
{Este texto foi escrito em uma madrugada insone, parido igualzinho a uma gravidez desconhecida e que se revela em hora mais inesperada. Era gato miando, galo cocoricando e cachorro latindo feito a peste, enquanto eu sofria, mais uma vez, por ter comigo pensamentos maiores do que a cabeça podia suportar. Então eu comecei a escrever.}
***
Kah Dantas é cearense, professora e escritora. É autora do livro Boca de Cachorro Louco, tem alguns contos publicados e premiados em concursos literários nacionais e apresenta seus textos nos canais intitulados Conta, Kah!, no blog Orgasmo Santo e aqui no Leituras da Bel.
Contato
Instagram: @contakah
Tumblr: https://contakah.tumblr.com/
Blog: Orgasmo Santo
Fabiano Seixas Fernandes é ilustrador, tradutor e poeta. Fundador da tradizer: serviços de tradução. Entre 2012 e 2015, publicou o blogue pequeninos (poesia autoral); publica o podcast quase uma Bethania (recitação de poesia). Traduziu poemas de John Milton para o português (L’Allegro, Il Penseroso, excertos de Comus e Paradise Lost).
Contato
tradizer: https://tradizer.com/ e https://www.facebook.com/tradizer/
quase uma Bethania: https://soundcloud.com/fabiano-seixas-fernandes
pequeninos: https://pqnns.blogspot.com.br/
Instagram: @fabiano.seixas.fernandes
Um comentário diferente. (depois é só juntar as pontas e hélas… fez-se luz)
Se setembro diz-se ser o mês do desapego. O mês 9 significa desapego, e este número contém todos os outros, compreende todos, contém em si o amor por todos mas entende também a necessidade de colocar pôr fim a algo, a alguma coisa. O desapego total.
O teu texto lembrou-me o final do “Império dos Sentidos” de Nagisa Oshima a parte final/inicio do teu texto, mas quando colocaste:
“Que triste, amor, que triste amor!
Que nem um poema você me deixou!”, lembrei-me da enorme Poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner:
“Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias”.
Ou da canção escrita por Caetano Veloso interpretada ou pelos Mutantes, ou por Marisa Monte:
“Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos
Sobre os mastros no ar
Soltei os tigres
E leões nos quintais
Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer…
Mandei fazer
De puro aço luminoso punhal
Para matar o meu amor e matei
Às 5 horas na Avenida Central
Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer”.
Por fim {Este texto foi escrito em uma madrugada insone, parido igualzinho a uma gravidez desconhecida e que se revela em hora mais inesperada. Era gato miando, galo cocoricando e cachorro latindo feito a peste, enquanto eu sofria, mais uma vez, por ter comigo pensamentos maiores do que a cabeça podia suportar, e aqui socorri-me da excelente ilustração de Fabiano Seixas Fernandes, e fui ver um poema de John Milton:
“Minha doce Eco, minha ninfa mais adorada, viveste ignorada
Dentro da tua bolha de ar
Nas margens tranquilas do Meandro,
E no vale bordado por violetas
Onde o rouxinol perdido de amor
Canta para ti, na madrugada, sua triste cantiga”
( poesia “Camus” de John Milton onde o poeta se refere à história de Eco e Narciso na Canção da Dama).
Parabéns Kah, continuas em grande forma. Obrigado.
(Ricardo Pocinho)
Cada palavra escrita por Kah é uma obra-arte, essa mulheré um fenômeno da literatura cearense