Por Vitória Régia*

Ilustração de Glauco Sobreira

Talvez um dos encontros mais inevitáveis nos últimos tempos tenha sido com certas personagens que, insistentes e intrusas, querem invadir até o meu sono. Nos primeiros raios solares que intimamente vão iluminando o canto de uma sala vazia, surgem as primeiras peças: o quebra-cabeça está posto na mesa. Partes incontáveis de algo que não me pertencerá. A solidão é o próprio processo. E para cada cabeça, um desfecho.

Sem permissão para me fazerem companhia, estas presenças, ainda indefinidas, acomodam-se onde lhes convém. O que importa é a busca incessante da medida perfeita, um núcleo duro que se partirá em pequenos esboços de atitudes e vivências. E por mais que alguém queira tomar para si todas essas histórias, elas ditarão suas próprias regras de liberdade.

Esperar que essas personagens se solidifiquem é aprender a lidar com o indefinível das coisas. A exaustão requer precaução. Exercício de paciência. Tarefa para poucos. E a entrega exige que se alinhe cada contorno para que um gesto ou um olhar cresça com sua vivacidade própria. Assim, estarão prontas para afrontar o que quer que seja. A palavra é lei maior.

Também me questiono se isso não é só mais uma forma de sonhar acordada. Os gestos e olhares, as escolhas certas e as erradas. Experiência angustiante de mirar o que ainda está disperso e vago. Até aqui ainda não sei o peso que cada uma dessas vozes terá na tessitura do texto. Mas o caminho deverá ser incerto. Continuo a cavar as camadas até atingir frases e soluços que a escrita, sem pudor, entregará aos leões. E talvez tudo isso também não passe de um ensaio para o fim. O núcleo será rompido.

E nesse deslocamento contínuo vou puxando cada linha de um emaranhado para tentar dar harmonia ao que não tem forma. Surgirão de um canto de um quarto, de uma estrada ou de estações? Fincarão os pés em três continentes distintos? Pouco importa. Afinal, toda personagem é cigana. Na confusão de um jogo de sombras, são necessários os traços fortuitos que sedimentarão vozes futuras. A boca de Maria, a angústia de Karen, os olhos de Luiza, a sagacidade de Elizabeth, o furor de Dolores, a despedida de Shoba, a caça impetuosa de Diana. Ninfas ou medusas. Já nascem meias verdades. Destoando de seu ponto de fuga.

***
Vitória Régia
é escritora e autora de Náutico (Editora Patuá)

 

About the Author

Colaboradores LDB

Colaboradores do Blog Leituras da Bel. Grupo formado por professores, escritores, poetas e estudiosos da literatura.

View All Articles