Por Vitória Régia*
“Devíamos continuar a olhar sem relaxar por um segundo a intensidade da emoção (…) Devíamos manter a cena presa – assim – num torno, não deixando que nada viesse a estragá-la” Ao Farol, Virginia Woolf
Contemplar: olhar com atenção; mirar; meditar profundamente. Considerando a relevância dessa palavra, tomo como premissa: observar é contemplar. Se verdadeira, já antecipo a conclusão: ainda não compreendemos, com profundidade, a dinâmica do tempo. Estado sem essência. Porque mesmo em observação, tudo nos escapa tão facilmente. No entanto, o tempo espalha lições em sua própria lógica, nos restando aceitá-las. Ou não.
Imaginem a cena: um homem viúvo que reaprendeu a cuidar de si depois de um longo luto, agora espera com grandes expectativas a visita cada vez mais rara do filho. Uma vez ao ano, seu filho decide viajar por duas horas para vê-lo em outra cidade. Viagem de média duração com o peso das responsabilidades. O tempo evidencia que não são os laços de sangue que sustentam relações, mas a reciprocidade. Nem tudo aguenta o peso das sentenças.
Na parede da sala de estar do viúvo, há outra composição: um quadro em posição de destaque, única obra da casa. Três de maio de 1808 em Madrid. Nas cores e formas de Francisco de Goya, eis um fuzilamento de homens; uns contra os outros, esqueciam a própria condição. Quando conseguiam escapar da miséria, eram encurralados pela guerra. Um deles ergue os braços em ato inútil de heroísmo, mais um nome que nunca seria lembrado. Poderia ser um jovem com menos de 25 anos. Sua esposa, alguns meses antes, morrera em decorrência de complicações no parto após gestar por nove meses o filho que nunca chegou a conhecer. Mais tarde, vítima da orfandade, a criança pouco realizaria em vida por estar condenada pela taxa de mortalidade do seu tempo.
Como compreender a sucessividade das coisas? Demarcando e rompendo territórios, esmerando o inextinguível. Talvez apenas reinventamos o tempo, em uma tentativa de interromper o curso natural de tudo que está ao alcance das mãos. Não carregamos o peso dos séculos com o sangue derramado pelo assombro da verdade. Ainda assim, o tempo reacende e aflora o mais iluminado e o mais nocivo dos sentimentos. Qual a medida perfeita? Incapazes de assumir a ruína do corpo e o lodo debaixo dos solados. A plasticidade do tempo não está nem na face de uma criança gerada para prolongar o código genético de um sobrenome. O tempo e sua didática na pele: memento mori.
Talvez na contradição do confessionalismo, o tempo será condensado pela lógica da palavra convulsiva. Como se faz a boa poesia? Nem amor feliz, nem sentimento ruim. Se a observação é estado inicial, o meio é a experimentação. Mas a matéria da poesia é a urgência. Urgência porque nossa finitude bate em ritmo acelerado. Nos inscrevemos no mundo assim: tentando cristalizar as horas e reverberando como agulhas rompendo tecidos. A palavra em sincronia com o peso do corpo. O que faz a boa poesia? A palavra ultrapassa o tempo. É o seu berço e o seu túmulo.
Fecho o caderno e vejo que no canto da sala há um arranjo de flores, lembrança da última festa de casamento. São de plástico. Não precisam de água, nem de luz. É necessário apenas um pano úmido a cada quinze dias. Aqui a poeira entra lentamente pela casa, enquanto equilibro na pena razão e emoção. Sustentar a poiesis. E transmutar o tempo, em todos os estados possíveis.
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Vitória Régia
é escritora e autora de Náutico (Editora Patuá)