Marília Lovatel*

Ilustração: Jéssica Gabrielle Lima

Cotovelos feridos

Fincados. Como se essas quinas – esquinas – do corpo pudessem dar o limite. Como se fossem capazes de conter a emoção diante do novo. Como se a agudeza do susto morasse nos cotovelos. Talvez a dor neles concentrada seja reação, consequência do contato com o inesperado. Ou somente uma dor que presume, adivinha, antecipa e lateja entre o braço e o antebraço. Surpresas exigem dos cotovelos. O de repente é uma topada. Uma interrupção. Um entrave no percurso. Pode jogar alguém no chão. Ou não. Pode ser apenas um descompasso. Rápido tropeço. O certo é que nunca se sabe o que nos reservam as esquinas. E não tem jeito de chegar a elas sem fazer escolhas. A aresta de um lugar pergunta para onde você quer seguir. Não há como fugir da resposta. Na esquina você está exposto. Não há becos ou vielas a enveredar para ocultar o que trazemos nos olhos. Se a verdade está à mesa, posta com duas taças de vinho tinto, resta fincar os cotovelos na távola, fazê-los âncoras, acreditá-los égides, ignorá-los frágeis arrimos. Para não cair. Não naufragar. Não flutuar. Para o chão não se abrir bem debaixo dos pés. Para se prender a uma menor porção de realidade, antes de mergulhar na ausência de sentidos que justifica o indicador apontado seja em que direção for. Qualquer uma serve para alguém que se perde. E fincar cotovelos com força dói. Deixa marcas. Fere a pele. Feridas duplas, de pares revelados, de se saber par, marcas parelhas, à mostra nas humanas dobradiças. Nada é mais delator do que cotovelos vermelhos. São as provas vivas em carne. Confissões involuntárias. São mais eloquentes do que um corpo despido em uma esquina. E nas esquinas não há esquivas. Como não há escusas para cotovelos machucados. Nem há como evitá-los. Não se pode viver sem que um dia paremos na ponta do ângulo para aprender sobre a nossa própria fragilidade. Na esquina, descobre-se que não há caminho certo. Que todas as decisões trazem o maravilhoso e o terrível nelas embutidos. E só uma coisa é pior do que fazer uma escolha à esquina: findar a vida com os cotovelos intactos.

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Marília Lovatel
Marília Lovatel cursou letras na Uece e é mestre em literatura pela UFC. É professora da Pós-Graduação em Escrita Literária no Centro Universitário Farias Brito. No intervalo de 6 anos publicou 10 livros infanto-juvenis, títulos apresentados por Rachel de Queiroz, Ignácio de Loyola Brandão, Ana Miranda, Antônio Torres e Socorro Acioli. Em 2019, lançou um livro de poemas e aforismos em parceria com Marcelo Peloggio. Duas vezes integrou o Catálogo de Bolonha e foi finalista do Prêmio Jabuti 2017.

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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