Quando o apocalipse passar

[playing with lights] Foto de Kami Girão

*Por Kami Girão

“Vou tirar de letra”, foi o que pensei quando fui dispensada após aquele 19 de março, quando as ruas já estavam vazias e eu já não podia mais abraçar os meus amigos. Cumprimentos com cotovelos se tocando e só. No sábado, ajeitei o escritório que seria o meu espaço de trabalho pelos próximos dois meses – e contando. Tirei livros, espanei poeira, fui até às 20h de máscara e um pitó horroroso no cabelo. Estava confiante de que daria certo. Caseira como sou, iria conseguir lidar com a quarentena.

Nas semanas seguintes, eu sentava no sofá e percebia que fora ingênua. Tola também. O vazio agora não era apenas nas ruas. Eu perdia os minutos sentada ali, no estofado que o tempo consumia mais e mais, pensando no que viria lá na frente. No ano anterior, fiz planos para 2020. O principal deles já não deu certo, bem antes da fatídica virada de 23h59 para 00h00. Mas existiam outros que preenchiam listas nos meus diários, planos B, C e D. E o que eu via enquanto estava sentada no sofá, quando minutos e dias se misturavam e eu não os percebia, era uma grande tela em branco. Não havia tintas para pintar, as lojas estavam fechadas.

Do outro lado do castelo, amigos e desconhecidos entoavam o mantra: “quando isso passar”. Mais planos – dessa vez, deles. Desejos para tomar uma cerveja gelada, dançar em alguma festa (teremos festas?), encontrar um crush quem sabe. Se tornou algo bem recorrente, esse desejo, que aparecia mais e mais nas minhas timelines, como uma rota para seguir, a luz no fim do túnel, a terra à vista que marinheiros sonham quando estão com seus barcos à deriva. Mas as previsões que eu lia de estudiosos não eram tão animadoras para sonhar assim, tão alto. O biólogo Atila Iamarino disse em uma das suas lives: “o mundo que conhecíamos em janeiro de 2020 não existe mais”.

Não vai existir existir um retorno à “vida normal” quando o apocalipse passar. E o que é normal no fim das contas? Rostos conhecidos e desconhecidos, amados por seus pares, já não circulam mais entre nós. O apocalipse leva consigo nomes, planos, sonhos. Levou o futuro, nos faz olhar para o passado com a esperança de que ele volte de alguma forma, ainda que pouca. Flashbacks de uma “normalidade”. Mas se não existe um futuro claro para se mirar, e se não dá para desejar esse passado que não nos cabe mais, só temos o presente para ser vivido. Não imagino que os gatos, quando se espreguiçam languidamente à sombra das janelas, pensem nas horas seguintes com a mesma ansiedade dos humanos. Ou nos meses, ou mesmo nos anos. Devem viver suas sete vidinhas de minuto a minuto, respeitando seu próprio tempo.

Talvez, neste momento, essa seja a nossa resposta. Não pensar, agora, em quando o apocalipse passar. Ele está entre nós e vai ficar por um tempo. É a visita deste ano, talvez do século. Mas mesmo quando os dias se confundem e não sabemos mais como o calendário funciona, temos uma manhã, uma tarde e uma noite a serem vividas. Um dia para estarmos, ainda que distantes fisicamente, em contato com quem amamos. Um dia para tentarmos, ao nosso modo, lutar contra a podridão escancarada do ser humano, ou para batalhar por aqueles que cuidam de nós. São vinte e quatro horas. 1.440 minutos. 86.400 segundos.

O tempo corre diferente para os gatos, é certo. Eu acredito que precisamos aprender algumas lições com nossos amigos felinos.

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Kami Girão
Nasceu em Fortaleza, Ceará. É designer gráfico, revisora, tripulante do CosmoNerd e pau para toda obra. Eterna estudante, mahou shoujo, escritora e, às vezes, tira tarô. Gosta de perambular por aí com uma câmera analógica de brinquedo que custou menos de trinta reais num site chinês. Pode chamá-la para papear sobre Boku no Hero, e vocês serão melhores amigos para sempre.

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Colaboradores LDB

Colaboradores do Blog Leituras da Bel. Grupo formado por professores, escritores, poetas e estudiosos da literatura.

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