Agora e na hora de nossa morte
*Por Zélia Sales


Estava quieto, parado – há quantos dias? – debaixo do pau branco. A árvore já meio pelada quase não lhe dava sombra. De olhos fechados, parecia que dormia em pé. “Está doente”, minha mãe me falou. Da janela eu via sua silhueta inerte no abafado do dia, no frio da noite. Fincara os cascos na areia onde antes corria um fio d´água que nós de casa chamávamos de grota. Ali por perto havia uma vegetação rala, mas ele não se animava a dar dois passos, baixar o pescoço, comer.

Arte de Carlus Campos, publicada no Jornal O POVO em 2015

No meio da tarde fui até lá, cheguei perto, passei a mão na sua testa rija, brinquei com suas orelhas. “Tá dodoi?” Percorri com o indicador o desenho escuro no seu dorso. Todos os jumentos têm esse desenho nas costas. Minha avó dizia que era a marca do mijo de Jesus Menino. Quando fugiam de Herodes, Maria Santíssima ia montada num jumentinho, o Menininho no colo, São José atrás, a pé, tangendo. Aí o Menino Deus fez um xixi. E desde então todos os jumentos do mundo trazem nas costas a marca do mijo que escorreu.

Na serra eu era acostumada com esses bichos, que meu tio Tó chamava de “os brutos” e tinha por eles grande consideração. Encontrava os comboios nas estradas, subindo ou descendo as ladeiras. Trabalhavam sem descanso carregando nas costas dois surrões de bananas, de rapaduras, ou dois volumosos feixes de cana, de lenha, a cangalha dura sobre a esteira rala lhes ferindo o espinhaço, e o chicote cantando no lombo. E eram animais tão dóceis, neles eu podia montar, não precisava muita habilidade, não ofereciam perigo. Quando morávamos no São João, havia alguns no curral, bem do lado da casa. Me afeiçoei a um deles que meu pai chamava de Cardão, “Pai, esse é meu”. Ele, calado, consentiu. Cardão tinha um diferencial, trazia no pescoço um estranho colar. Um dia alguém me disse que era uma corrente de bicicleta. Eu nunca tinha visto uma bicicleta.

“Tá com medo?” Ainda conversei com ele sobre sua mãe, tadinha, tão moça ainda, escambichada de tanto trabalhar, seus irmãos perdidos pelo mundo, seu anjo da guarda tão distraído… e sobre outros assuntos que só podiam interessar a uma menina e um jumento. Ele de olhos fechados, as ideias pausadas. Em casa, comuniquei a minha mãe:

– Amanhã vou buscar água pra ele.

– Você vai matar esse jumento… – ela nem levantou os olhos da costura, mas tinha uma ponta de preocupação na voz. – Faz quantos dias que ele não bebe? Na hora que beber, morre.

– E se ele morrer de sede?

– Ele vai morrer de qualquer jeito.

E no outro dia ele estava lá, de pescoço arriado. “Na hora que ele beber, morre”. Já passava das quatro quando enfim decidi. Peguei uma lata, um balde, uma corda, na minha casa não havia água encanada, me dirigi pro sítio do outro lado da rodovia onde havia um cacimbão. Joguei o balde uma, duas, três vezes. A lata já estava quase cheia. Saí, um passinho atrás do outro, a lata pesada na cabeça, “ele vai morrer de qualquer jeito”, a massa d’água balançando, o vestido já todo molhado. Atravessei a pista, passei em frente a minha casa e fui depositar a lata d’água ali perto do jumento. Em casa peguei a bacia grande de alumínio que minha mãe usava pra lavar roupa. Ela estava na cozinha, percebia meu vai e vem, mas não se intrometeu. O recado estava dado.

Coloquei a bacia no chão, despejei ali a água; era de cacimbão: grossa, pesada, salobra. Sentei do lado e esperei. Ele começou a beber. Bebeu, bebeu, bebeu. De olhos fechados, vagarosamente, como se lambesse a superfície da água. Agora ele já não tinha medo. O sol desaparecera atrás de uma nuvem, e um vento vindo não sei de onde moveu os galhos do velho pau branco, o mundo suspirava aliviado. Estiquei as pernas sobre a areia morna, eu tinha o resto da tarde para esperar, ele tinha toda a vida que lhe restava para beber toda aquela água.

***

Zélia Sales
Já fez algumas conquistas na vida e diz que uma das mais ousadas é escrever, publicar, chegar ao leitor, que é sua maior motivação. É formada em Letras e atua na formação de leitores em escolas públicas. Nas voltas que o mundo deu, virou também dona de casa, esposa, mãe, escritora. Enquanto escreve, corrige redações, refoga um frango, procura os filhos pelo Whatsapp. Acredita que escrever é assumir uma conduta subversiva. Ela integra o livro Relicário – produção comemorativa pelos 30 anos do caderno Vida&Arte.

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Colaboradores LDB

Colaboradores do Blog Leituras da Bel. Grupo formado por professores, escritores, poetas e estudiosos da literatura.

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