Publico a sétima história sobre o cangaço, reproduzida do livro “No tempo de Lampião”, de Leonardo Mota [1891-1948 ], cearense de Pedra Branca que dedicou-se a pesquisar as coisas do sertão nordestino.

Estou editando as publicações aos domingos, tendo já publicado:

O príncipe
Para tirar a raça
O castiçal
Quem escreveu a patente de Lampião
A morte do Jararaca
O troféu

Fique agora com:

“Brincadeira de homem”

Antônio Silvino fazia-se respeitado de seus satélites. Disciplinava-os. Sabia assegurar a conveniente distância que deve existir entre comandante e comandados. Jamais permitiu atrocidades que não houvesse, em pessoa, determinado.

Chegara ele com a sua récua a uma fazenda. À hora do improvisado almoço, um cabra, o Tempestade, deu-se ao luxo de reclamar:

– Ô arroz insosso de todos os diabos!

Um relâmpago de cólera fulgiu nos olhos de Silvino, que, findo o repasto, foi falar à mulher do fazendeiro:

– Dona, a senhora tem sal em casa?

– Tenho, seu Capitão. Eu vi aquele homem não gostar… Vossenhoria me discurpe, me perdoe o arroz sair insosso: foi coisa do avexame, do aperreio do perparo…

… – Nhóra não, não é por isso, não: eu quero saber se a senhora me pode vender meio litro de seu sal.

– Posso lhe ceder; vender não. O Capitão leve o sal, que não lhe custa nada e é dado de gosto!

– Nhóra não, não é pra carregar, não. É um ensinamento que eu quero dar naquele cabrocha, que falou do arroz. Me vá ver meio litro, por bondade!

Atendido, Silvino pediu uma bacia, derramou dentro o sal, dissolveu com uma porção de água e, voltando ao terreiro, onde o Tempestade esgravatava a dentuça, obrigou-o, de punhal à mão, a beber toda aquela água, horrivelmente salgada:

– Isso é pra você, seu bruto, perder o costume de botar defeito no que lhe dão, de graça! Engula! Ou engole, ou morre! Comeu insosso, beba salgado, que é pra carga não ficar torta… Cabra sem criação!

Daí a pouco o Tempestade padecia sob a ação do purgante mais que enérgico…

Lampião aparceira-se com os miseráveis a quem capitaneia. Troca insultos e graçolas com eles. Falta-lhe o espírito autoritário de Silvino. Apenas na hora dos combates, é cegamente obedecido: todos crêem na sua invicta estratégia de guerreiro caboclo.

Antônio Ferreira, irmão de Virgolino, também se acamaradava em excesso com os restantes componentes do bando. Um dia, Lampião mandou que o mano e mais quatro homens fossem à casa dum seu protetor e esperou no mato que regressassem. No alpendre da casa em questão, havia uma rede armada. Os cinco bandidos, empurrando-se violentamente, disputavam o gozo de alguns momentos na tipóia. Nesse ruge-ruge de encontrões, um fuzil cai ao solo e dispara, prostrando morto Antônio Ferreira, atingido pelo tiro no mamilo esquerdo.

Compungidos, os quatro criminosos voltaram imediatamente à presença de Virgolino. Conduziram o cadáver e narraram a casualidade da fatal ocorrência. Lampião ouviu-os, silencioso. A cabroeira, solidária com o chefe, censura os recém-vindos, lembrando que por via duma dessas é que o povo diz que brincadeira de home cheira a defunto… Sabino Gomes, mais perverso, insinua que a história está mal contada…

Lampião decide: não quer mais a companhia dos autores da vadiação em que morreu o Antônho. Expulsa-os do bando. O armamento, porém, era seu, dele. Exige imediata restituição. E apenas os quatro se haviam despojado das armas, Lampião, auxiliado por Sabino, os liquida a tiros e facadas.