Um dos mais cultuados jornalistas do mundo, o polonês Ryszard Kapuscinski, morto em 2007, tem a veracidade de suas reportagens contestada em biografia, escrita por Artur Domoslawski.  O livro de 600 páginas, com o título “Kapuscinski Non-Fiction”, acaba de ser lançado na Polônia.

Veja matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo, edição de hoje [16/3/2010], assinada pela repórter Fernanda Mena.

«Biografia sugere que Kapuscinski mentia em textos

Fernanda Mena

Ao relatar guerras, golpes e revoluções dos locais mais remotos do mundo, o polonês Ryszard Kapuscinski (1932-2007) criou um gênero jornalístico, espécie de reportagem político-literária.

Aos poucos, sua reputação ganhou contornos míticos. Kapuscinski se tornara amigo de Che Guevara na Bolívia e de Patrice Lumumba no Congo. Cobrira 27 golpes, fora preso mais de 40 vezes e sobrevivera a sete sentenças de morte. Publicara mais de dez livros, alguns premiados e muitos traduzidos para cerca de 30 idiomas.

As 600 páginas de uma biografia recém-lançada na Polônia, no entanto, colocam um ponto de interrogação nas façanhas de jornalista. Segundo “Kapuscinski Non-Fiction”, de Artur Domoslawski, sua obra pertence ao reino da ficção.

Testemunho ou invenção?

Trata-se do quinto livro a explorar a vida, a obra e o mito em torno de Kapuscinski. Biografias anteriores levantaram suspeitas de que o jornalista prestasse serviços de espionagem aos comunistas em poder na Polônia, numa caça às bruxas ainda comum naquele país.

O que faz o livro de Domoslawski é questionar a veracidade de suas “não-ficções”.

Em entrevista ao diário britânico “The Guardian”, o autor exemplificou duas descobertas dos três anos em que refez os passos do jornalista. Em Uganda, Kapuscinski descrevera que os peixes no lago Vitória estavam gordos de tanto comer restos dos corpos de vítimas do ditador Idi Amin. Na verdade, eles estavam maiores por conta da fartura de alimento provocada por uma cheia do rio Nilo.

Em outro caso, o polonês relatou com crueza um massacre ocorrido no México em 1968. A biografia alega que Kapuscinski sequer estava no México.

Guevara? Lumumba? De acordo com Domoslawski, essas amizades nunca existiram.

“Meu livro é justo. Não acho que tenha manchado a imagem nem o legado de Kapuscinski. Apenas descobri que a verdade é bem mais complexa do que o mito. Mas ainda o considero como um mentor”, disse o autor, também jornalista.

A viúva de Kapuscinski, Alicja, recorreu aos tribunais para impedir que o livro chegasse às prateleiras, sem sucesso.

Um novo velho debate

O chamado jornalismo literário sempre foi terreno fértil para a discussão sobre os limites entre ficção e realidade.

A nova biografia de Kapuscinski reacendeu este velho debate. O âncora do canal de TV britânico Channel 4, John Snow, escreveu em seu blog: “Sempre suspeitei que o repórter polonês fosse uma farsa”. No texto, ele descreve as inúmeras guerras e conflitos que cobriu sem nunca ter encontrado com Kapuscinski.

O professor de história de Oxford Timothy Garton Ash escreveu que cruzar o limite entre ficção e realidade no jornalismo significa classificá-lo, obrigatoriamente, como ficção. Ash brinca que uma solução fácil para a polêmica é simplesmente mudar as obras de Kapuscinski de prateleira: de “não-ficção” para “ficção”.»

[Digitando “Kapuscinski” na Google, poder-se-á ver vários textos jornalísticos atribuindo ao jornalista façanhas que a biografia põe em dúvida.]