Matéria publicada no portal da BBC Brasil, assinada por Daniela Fernandes, mostra a polêmica que vem provocando na França a decisão de um jornalista de revelar à polícia a identidade de supostos pedófilos que foram suas fontes em uma reportagem.

A denúncia do jornalista provocou a prisão de 22 supostos pedófilos, e de pessoas que mantinham de imagens de pornografia infantil, na França e um no Canadá.

A reportagem feita com câmera escondida, foi produziada para o programa  programa “Les Infiltrés” (Os Infiltrados), do canal estatal France 2.

Para atrair os supostos pedófilos, o jornalista Laurent Richard, chefe de redação do programa, fingiu, em salas de bate-papo na internet, ser “Jéssica”, uma garota de 12 anos.

O jornalista também filmou encontros com diversos homens, entre eles um sexagenário, um parisiense de 26 anos e um empresário de 35 anos que confessou abusar de sua filha de cinco anos. As vozes dos entrevistados foram alteradas e seus rostos não aparecem na reportagem, que levou cerca de um ano para ser realizada.

Para justificar a divulgação das informações à polícia, Richard diz ter feito “o que todo cidadão deve fazer” em razão da “gravidade” dos fatos descobertos.

“Quando detemos informações que podem impedir tentativas de corrupção de menores ou o estupro de crianças, é normal levar o caso à polícia”, afirma. A lei francesa define como cúmplice qualquer testemunha de atos criminosos contra crianças.

Polêmica

O assunto vem causando polêmica e alguns jornalistas acusaram a equipe de reportagem do programa de trabalhar como “auxiliares da polícia”. O código de deveres da profissão, uma declaração de princípios, afirma que “um jornalista digno desse nome não confunde o seu papel com o de um policial”.

O secretário-geral do Sindicato Nacional dos Jornalistas da França, Dominique Pradalié, declarou “estar escandalizado” e afirmou que “os jornalistas não devem divulgar suas fontes”.

Hervé Chabalier, presidente da agência Capa, que produziu a reportagem, disse que existem circunstâncias excepcionais que obrigam os jornalistas a abrir exceções em relação ao sigilo de suas fontes.

Chabalier afirma que a equipe de reportagem cumpriu a lei, que prevê penas de prisão e multa para quem tiver conhecimento de violações sexuais de menores e não informar as autoridades.

Na França, a proteção de fontes jornalísticas pode ter exceções, que devem ser avaliadas por um juiz.

“Nenhuma lei prevê que o jornalista deva denunciar criminosos por sua própria iniciativa”, escreve o jornal Le Monde.

Ombudsman

Quando atuei como ombudsman do O POVO deparei com situação parecida com essa. Ao produzirem uma reportagem intitulada “Documento BR”, sobre exploração sexual de crianças e adolescentes nas rodovias federais que cortam o Ceará, os repórteres resolveram denunciar o caso à polícia.

Dei o nome à coluna em que comentei o caso de “Quando o jornalista se indigna”. Leia a seguir.

Quanto o jornalista se indigna
Plínio Bortolotti
23/12/2006

O que o jornalista deve fazer quando, em uma cobertura, vê uma pessoa em perigo: ajuda-a ou se mantém centrado no trabalho? Se ele for repórter-fotográfico, prioriza a fotografia ou acode alguém em dificuldade, perdendo o momento de gravar a imagem? Jornalista deve interferir na realidade ou apenas reportar os fatos que está cobrindo? Se o jornalista não depara cotidianamente com tais escolhas, no decorrer de sua vida profissional, pelo menos uma vez, é provável que haverá de se haver com elas. E, como sempre escrevo nesta coluna, nunca encontrará resposta fácil para os dilemas com os quais vai se defrontar.

Com o caderno Documento BR, o jornal iniciou uma série de reportagens sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes nas rodovias federais, que passam pelo Ceará. O suplemento, encartado na edição de domingo passado, é de forte impacto, principalmente a entrevista com uma adolescente, de 16 anos, que iniciou suas desventuras nas ruas aos 11 anos de idade. Em seu depoimento, a menina diz ter sido obrigada a vender drogas para um delegado, uma delegada e um inspetor da Polícia Civil. (Ela revela todos os nomes, suprimidos na edição da entrevista.)

Antes da publicação da reportagem, os repórteres que estão fazendo a cobertura, procuraram a Corregedoria da Polícia Civil, entregaram os dados levantados, incluindo o nome dos policiais supostamente envolvidos na atividade criminosa, e pediram proteção para a adolescente, inscrevendo-a no programa federal de proteção à testemunha. Ainda sob o impacto das situações degradantes que testemunharam, também passaram a fazer o que um deles, Demitri Túlio, chama de “jornalismo de proposição”. Procuraram a Assembléia Legislativa, promotores de Justiça e entidades de defesa da criança e do adolescente, propondo e cobrando ações para enfrentar o problema, algumas das quais saíram de forma imediata. A Assembléia Legislativa vai destinar, por meio de convênios, R$ 60 mil para a produção de um documentário sobre o assunto e sua TV passará a ter uma hora diária da programação para abordar o tema. Também serão produzidos 40 programas de rádio a serem enviados a 60 emissoras do Estado. Com base no que foi apurado, o procurador Geral da Justiça, Manuel Oliveira, escreveu um documento recomendando aos promotores das comarcas dos 184 municípios que exigissem das respectivas prefeituras o diagnóstico da situação da infância e adolescência em seus municípios. A União dos Vereadores do Ceará e prefeitos de algumas cidades também anunciaram ações para enfrentar a situação.

Ética

A meu pedido, Demitri procura conceituar o modo como ele e seus colegas de cobertura vêm encarando o trabalho: “Não nos contentamos apenas com a investigação e a denúncia. Fomos cobrar mais de perto soluções ou iniciativas para a mudança de cenário. No jornalismo, nada pode ser fechado, preso a fórmulas prontas. Dependendo do caso ou da circunstância refazemos caminhos. Mas a cobertura é isenta e eticamente correta; observamos, sempre, a questão ética”.

Demitri ainda diz que tudo o que vem sendo prometido pelas autoridades será acompanhado: “Vamos cobrar para que as coisas se materializem em ações”. E finaliza fazendo uma profissão de fé: “Fomos além da notícia. Fomos além da cobertura jornalística e da investigação pura e simples. Não ficamos na denúncia pela denúncia. Entendo, isso é opinião particular, que temos de lutar por uma sociedade mais justa. E minha trincheira é o jornalismo”.

Um dos paradigmas do jornalismo brasileiro, Cláudio Abramo (1923-1987), dizia que a ética dele como jornalista era a mesma que ele tinha como cidadão. Vejam o que ele escreve no livro A Regra do Jogo: “Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras, e minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista – não tenho duas. (…) O cidadão não pode trair a palavra dada, não pode abusar da confiança do outro, não pode mentir. (…) O jornalista não tem ética própria. Isso é um mito. A ética do jornalista é a ética do cidadão. O que é ruim para o cidadão é ruim para o jornalista.” Suspeito ser algo parecido o que Demitri queira nos dizer, ainda que seja preciso lembrar, que os jornalistas, como várias outras profissões, têm um código de ética próprio, para dar conta das especificidades do ofício.

A ombudsman emérita do O POVO, Adísia Sá, professora de jornalismo, inclusive da disciplina de Ética, explica o que ela chama de “filosofia da informação”: a existência do fato, a sua confirmação pelo repórter, e a publicação do que foi apurado. “Aí se encerra o papel do jornalista”, diz ela. Se o jornalista entender que alguma providência deva ser tomada em relação ao fato noticiado, Adísia defende que o local devido para expô-la seria o próprio jornal, em espaço destinado à opinião. Quanto à questão específica da adolescente que ficaria sob risco com a publicação da reportagem, a professora avalia que os repórteres agiram de forma “absolutamente correta” ao providenciarem proteção para ela, pois ao divulgarem as suas declarações, a adolescente estaria sujeita a possível vingança por parte dos denunciados.

Reportagem

O caderno Documento BR foi produzido pelos jornalistas Cláudio Ribeiro, Luiz Henrique Campos, Felipe Araújo, Demitri Túlio e o repórter-fotográfico Fco Fontenele. Com o motorista Valdir Gomes, eles percorreram mais de quatro mil quilômetros nas rodovias federais no Ceará, mapeando mais de 50 locais onde o crime de exploração sexual contra crianças e adolescentes acontece com mais freqüência. O jornal continua a acompanhar o assunto.

O suplemento é resultado de um projeto vencedor do Concurso Tim Lopes de Investigação Jornalística, organizado pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) e pelo Instituto WCF-Brasil. Os premiados receberam financiamento para produzir a pauta sobre o abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Dão apoio ao projeto o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Organização Internacional do Trabalho (OIT), Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).