Reprodução da coluna “Menu Político”, caderno “People”, edição de 13/9/2015 do O POVO.

Violência contra as mulheres: o que fica oculto
Plínio Bortolotti

Em artigo para O Estado de S. Paulo (5/9/2015), o sociólogo Gabriel Zacarias faz uma provocativa afirmação a respeito da imagem do menino Aylan Kurdy, fotografado morto na praia de Bodrun, na Turquia. Para Zacarias, a força da imagem que chocou o mundo não está naquilo que ela revela, mas no que oculta.

“Que se trata de uma criança curda refugiada, que pereceu na tentativa de atravessar a fronteira turca com a Grécia, essa já não é uma informação contida na imagem (…) Isso não altera em nada o efeito da imagem, que não depende de seu contexto. Pelo contrário, a força da fotografia está, em grande parte, ligada a seu caráter genérico, no sentido forte da palavra. (…) A imagem do garoto caído à beira-mar evoca, em primeiro lugar, a dor da perda de uma criança, morte que é sempre sentida como a mais injusta. Em consequência, evoca também a empatia com a perda de um filho (…) É difícil imaginar um pai ou uma mãe que possam ficar impassíveis diante dessa foto (…) Portanto, insisto, a fotografia que tomou as capas dos jornais tira a sua força daquilo justamente que ela oculta. Ela oculta o específico. Ela oculta o fato de que aquele garoto é curdo. Ela oculta o fato de que Aylan morreu porque era curdo.”

Guardadas as diferenças das situações, alguma coisa parecida poderia ser dita sobre morte de uma mãe e sua filha de oito meses, assassinadas pelo marido, pai da menina, em uma casa de praia em Paracuru, Ceará. É claro que o covarde duplo assassinato é injustificável sob qualquer aspecto; por mais que se busque algum atenuante, ele não será encontrado.

Porém, é preciso dizer que o crime ganhou grande repercussão, inclusive na imprensa, por dois motivos: porque atingiu uma família de classe média, e um dos mortos era uma criança absolutamente indefesa. Portanto, o que está oculto é: se somente a mulher fosse assassinada, a repulsa da sociedade seria menor; se ela fosse uma mulher pobre, menor ainda.

Zacarias encerra seu texto anotando: “Se a fotografia de Aylan Kurdi é tão provocadora e parece dizer tanto, talvez seja porque, na verdade, ela nos fale simplesmente da dor genérica da morte, do medo da perda de um filho, sem que isso possa comunicar a devastadora experiência da guerra”.

Quanto ao assassínio de Adriana Moura de Pessoa Carvalho Moraes, e de sua filha Jade, poder-se-ia parafrasear Zacarias afirmando que a tragédia nos fala da dor genérica da morte, do medo da perda de um filho, sem que isso possa comunicar por completo a devastadora experiência das mulheres submetidas à violência de maridos e companheiros.

Senão, vejamos. Até julho deste ano, 153 mulheres foram assassinadas no Ceará; no mesmo período, no ano passado, foram 170: mortas a facadas, a tiros; por espancamento, queimaduras e apedrejamento. A maioria delas morreu pelas mãos de namorados, companheiros e maridos, resultantes de uma (de)formação cultural, que leva os homens a se considerem donos das mulheres, que devem se submeter às vontades do “macho”.

Houvesse mais compaixão com essa “devastadora experiência” das mulheres, certamente esses casos – rapidamente esquecidos -, teriam obtido mais ressonância na sociedade e provocado ação mais rigorosa das autoridades para punir os assassinos.

NOTAS

Violência
Além do alto índice de mortes – o Ceará é o terceiro estado nordestino com o maior número absoluto de mulheres assassinadas – até junho deste ano foram registradas 2.361 casos de violência doméstica no Estado.

Hipocrisia
A violência contra as mulheres é histórica no Brasil. No início do século passado, o escritor e cronista dos costumes do Rio de Janeiro, Lima Barreto, revoltava-se com a hipocrisia da sociedade, a qual lhe parecia haver estabelecido “como direito e mesmo dever (do marido)” assassinar a mulher suspeita de adultério.

Amor
Em outra crônica (1915) Lima Barreto apelava: “Deixem as mulheres amar à vontade. Nas as matem, pelo amor de Deus!”

Créditos
Artigo de Gabriel Zacarias – O que não vimos. Os textos de Lima Barreto, no livro Crônicas escolhidas, editora Ática (1995).

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