Reprodução da coluna “Menu Político”, caderno “People”, edição de 24/12/2017 do O POVO.

O “marqueteiro” e o limite da ética

Quanto eu era menino pequeno, morando na periferia, meu pai afixou um cartaz à frente de nossa modesta residência: “Cuidado, cachorro bravo”. Nós não tínhamos cachorro, quanto mais bravo; nosso animal de estimação era uma simpática cabritinha, mansa que só ela, criada em casa, na mamadeira.

A preocupação de meu pai, com sua inocente mentira – que não faria mal a ninguém -, era preservar dos amigos do alheio a produção de meia dúzia de laranjeiras e algumas galinhas, que ciscavam no terreiro dos fundos. (Sim havia um tempo em que se roubavam laranjas e galinhas. Hoje se fabricam laranjas, os políticos, e galinhas viraram “chesters”, produzidos em escala industrial.)

A lembrança veio-me à memória quando li no portal do El País a notícia sobre “O marqueteiro brasileiro que importou o método da campanha de Trump para usar (nas eleições brasileiras) em 2018”. André Torretta, o tal “marqueteiro”, associou-se à Cambridge Analytica, empresa britânica que trabalhou na polêmica campanha do presidente americano Donald Trump. A reportagem começa com uma explanação de Torreta, esta:

“Eu comprei uma praia e não quero que as pessoas entrem. Qual é a melhor placa para eu fincar na areia? Essa, dizendo que a praia é privada, ou essa, dizendo que a praia tem tubarão? A que tem tubarão funciona mais”, conclui, rindo, mostrando as placas em um Power Point. Continua Torreta: “Se não houver tubarão na praia será uma mentira, certo? Se não tiver tubarão, então é uma fake news. Eu não vou fazer isso (nas campanhas políticas nas quais pretende atuar), mas isso existe, é possível e dá para ser feito, no limite da ética”.

Três coisas sobre a apresentação do “marqueteiro”.

1) Ele poderia ter escolhido um exemplozinho melhor para a sua fake news: o medo de haver tubarão nas águas do mar não impede, por exemplo, que farofeiros invadam a sua praia particular e se aboletem na areia.

2) Estaria ele no “limite da ética” se o uso da placa, o fake news, se limitasse aos efeitos do ingênuo do cartaz do meu pai. Mas todos sabemos – o “marqueteiro” mais do que ninguém – o impacto deletério e perigoso de uma notícia falsa, repetida para milhões de pessoas.

3) É de se duvidar que a Cambridge Analytica tenha respeito aos “limites da ética”, levando-se em contra a campanha de Trump e a do Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia), na qual a empresa também esteve envolvida.

Mas o fato é que a Analytica quer testar no Brasil o método utilizado na campanha de Trump. Esse modelo consiste em trabalhar com quantidades gigantescas de informação – o conceito de “big data” – analisando-as de modo a enviar informações personalizadas a cada pessoa, manejando a “psicologia comportamental” para convencê-la a aceitar ou rejeitar determinada ideia, política ou econômica, usando, principalmente, as redes sociais. Os métodos para chegar a isso ainda são obscuros.

Em seu portal, a companhia afirma ter cerca de cinco mil tipos de informação de mais de 220 milhões de americanos. Ou seja, cinco mil informações a respeito de cada um dessas 220 milhões de pessoas. Alguns especialistas dizem que, cruzando esses dados, a Analytica é capaz de saber mais sobre um determinado indivíduo do que ele próprio.

Por aqui ainda é desconhecida quantidade de informações à disposição da empresa. Porém, conseguir dados sobre os brasileiros, em instituições públicas e privadas, é a coisa mais fácil do mundo. Fora as informações que as pessoas oferecem, voluntariamente, nas redes sociais.

Portanto, caro eleitor, olho vivo para não se transformar em joguete nas mãos de marqueteiros, que vão fazer as táticas de João Santana e Duda Mendonça parecerem coisas de criança.

NOTAS

CONSERVADORES
A Analytica costuma trabalhar para candidatos conservadores. Um de seus investidores é Robert Mercer, bilionário republicano. Steve Bannon, que foi estrategista-chefe de Trump, fazia parte do conselho administrativo da empresa.

CRÉDITO
El País: O marqueteiro brasileiro que importou o método da campanha deTrump; Valor Econômico: Após Trump e Brexit, Cambridge Analytica vai operar no Brasil; Folha de S.Paulo: Empresa que atuou na campanha de Trump chega ao Brasil.

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