199509Finalmente, e isto é o mais importante, há convergência entre a descontinuidade-multiplicidade que desvendo em mim e a filosofia (antropocosmologia) que me atrai e que se fundamenta na natureza histérica do homem e na natureza caótica do mundo. O delírio, a meu ver, não é apenas a desordem de sentimentos, mas também a ordem do sistema acabado. Este livro situa-se exatamente no ponto onde nascem os dois delírios. Talvez seja no núcleo do caos que se trava – se existe verdade – o combate pela verdade.
Edgar Morin
[X da questão: o sujeito à flor da pele. Trad. Fátima Murad; Fernanda Murad Machado – Porto alegre: Artmed, 2003, p. IX]
Ler autobiografias e diários sempre me causou imenso prazer. Nas autobiografias e diários, em geral, os autores se desnudam, dando a conhecer facetas de sua personalidade e de sua vida que habitualmente não deixam transparecer nos seus outros escritos. Em alguns casos, porém, ao prazer de ler um diário ou uma autobiografia soma-se um outro: o de encontrar na leitura trechos os quais nos levam a pensar: puxa vida, isso poderia ter sido escrito por mim, porque eu diria exatamente o que aqui afirma o autor.
Edgar Morin é um desses pensadores com o qual me identifiquei desde que li a primeira linha de um de seus livros. Nunca mais deixei de retornar às suas obras. Cada novo livro que fui lendo de Morin foi descortinando para mim um novo mundo com novas propostas e possibilidades. No entanto, entre as muitas obras de autoria do pensador francês cuja leitura poderia sugerir, destacaria o livro X DA QUESTÃO: O SUJEITO À FLOR DA PELE. O livro começou a ser escrito durante o período de convalescência de Morin quando esteve doente no Estados Unidos, o que o levou a uma hospitalização. Tenho experimentado tanto deleite com a leitura desse livro, que a ele tenho retornado muitas vezes. Há trechos que já li dezenas de vezes sempre com renovado prazer. Penso que no X DA QUESTÃO Morin aparece inteiro, sem disfarces, pondo à mostra as descontinuidades e contradições que nos constituem a todos enquanto sujeitos, isso que Morin denominou de “natureza histérica do homem”. Um dos aspectos do pensamento moriniano que mais me fascina é exatamente o posutlado do ser histérico como condição constitutiva do sujeito. Com Morin a histeria deixa de ser uma categoria patológica para se tornar condição inerente ao humano. Deixo, à guisa de conclusão, um trecho em que Morin descreve o livro, com o meu expresso desejo de que tal trecho consiga fisgar alguns leitores para a leitura dessa fascinante obra:
“Corrigi pouco (apenas descuidos excessivos), cortei pouco, não acrescentei nada. O acabamento, o polimento, a revisão geral do pensamento em uma forma constituída teriam ocultado o pensamento constituinte (que é igualmente insistente, estagnado) e destruído o que aflora aqui e ali, o pensamento oculto, o pensamento insuficiente que espera, pela catálise, a enzima. Foi sem dúvida uma mistura de coquetismo e de convicção de autor que me fez decidir: por um lado, eu quis manter o ‘human touch’ das pequenas anotações pessoais que balizam as longas reflexões bastratas, o ‘human interest’ de um trabalho de si sobre si, feito no ato, com seu movimento incerto de busca, saído de um leito de hospital e se perdendo na agitação do retorno a uma vida dita normal. Mas, por outro lado, não quis mascarar o que é a verdade de minha (de toda) pessoa, a vida em muitos planos separados, simultâneos, as surpreendentes descontinuidades do ser… acho que é preciso que o leitor veja o emaranhado ou o paralelismo de uma crise pessoal, de um requestionamento geral, de uma preocupação política, do surgimento inevitável do Eros, de pequenas obsessões e de repulsas singulares, e, finalmente, ‘sob’ e ‘contra’ a vontade de discurso coerente, as rupturas e as falhas de uma simples existência”.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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