Então teve o seis de agosto, Festa da Transfiguração. O episódio, um dos mais belos da epopéia de Cristo, é narrado por nada menos que três dos quatro evangelistas, somente São João não o menciona. Parecia-lhe que, depois do dois de agosto, o rumo de sua vida mudaria. Caminhava contente trauteando velhas canções que sempre lhe traziam alegria. Mas, eis que chega a manhã de seis de agosto.

Pegou a Bíblia e resolveu abri-la, dando largas a uma prática que convencionara chamar de consulta sincrônica, prática, aliás, muito antiga, embora sem que este nome, pelo que o saiba, lhe tivesse sido dado até então. Consistia nisso: formulava uma questão ou uma afirmação e abria a Bíblia aleatoriamente. Pois naquela amanhã, resolveu formular não uma pergunta, mas uma afirmação. Abriu, então, o Livro Sagrado em Romanos 2,21. Ao ler a primeira parte do versículo, as palavras provocaram-lhe tal comoção que ele precisou levantar e pegar um café na cozinha, dando tempo para que pudesse aquietar um pouco o coração. Retornou, e leu novamente o trecho bíblico. Uma sensação de incômodo instalou-se naquele homem.

Confuso, perturbado, …decepcionado consigo mesmo, resolveu tentar uma segunda consulta. Ao abrir sincronicamente o Livro Santo, seus olhos pousaram em Hebreus 8,7. O versículo o deixou parcialmente aquietado, ao rememorar o pacto celebrado há cinco dias. Ainda assim, porém, um certo incômodo persistia. Na verdade, aquele homem nunca tinha cem por cento de garantia. Parece que estava fadado a seguir tentando acertar às apalpadelas. Pelo menos ele não desistia, pois fora talhado em madeira de lei, daquelas que, eventualmente, podem até  rachar e fender, mas não se partem com facilidade.      

Como lhe restasse, porém, um angustiante incômodo, lembrou de consultar o Livro de Efemérides Cristãs, ao qual sempre recorria. Na verdade, desde muito tempo fizera do Efemérides, nome pelo qual se referia habitualmente ao livro, uma espécie de breviário, consultando-o diariamente. Então, resolveu abri-lo. O livro trazia as efemérides dos trezentos e sessenta e cinco dias do ano. Resolveu consultar as efemérides de seis de agosto.

Que alegria ao ler o que estava destacado em negrito no topo da página: Transfiguração do Senhor. Oh!, ficou maravilhado. Pegou o Livro Santo e, comovido, leu o relato de Mateus 17, 1-8. Lembrou, naquele momento, de que estivera, certa vez, no Monte Tabor, quando de sua peregrinação à Terra Santa, e da emoção que experimentara ao entrar na Igreja da Transfiguração, em cujo teto encontra-se uma representação pictórica do episódio bíblico.

Seis dias depois, assim inicia Mateus o relato. Há exatos seis dias decidira que celebraria o pacto, o grande pacto de sua vida, propósito que consumara no dia seguinte, dois de agosto. Rememorou a feliz coincidência (?). Não satisfeito com a leitura de Mateus, resolveu intensificar a emoção do momento, lendo também Marcos 9, 2-8 e Lucas 9, 28-36. Leu e releu os textos por mais de uma vez. O relato da Transfiguração fê-lo lembrar de quanto almejara operar em si a grande transmutação de que falavam os alquimistas, seus mentores durante longos anos. De fato, era possível, mutatis mutandis, estabelecer um certo paralelo entre Transfiguração e Transmutação. Era a esta última que aquele homem aspirava.

Repassou mentalmente sua visita ao Monte Tabor. Rememorou a extasiante paisagem que se descortina do topo da montanha, desde o episódio bíblico convertido em lugar de adoração. Congratulou-se por ter recobrado a quietude inicialmente abalada pela primeira leitura daquela manhã.

Tinha, agora, que sair para trabalhar. Antes, porém, resolveu dar uma folheada no livro que um amigo lhe presenteara no dia anterior. Qual não foi sua surpresa – aquele homem tinha em tais surpresas o sustentáculo de seus dias – ao ler um trecho em que o autor se referia ao caráter sagrado atribuído pelos Incas ao número quarenta e oito. Mais uma vez fora-lhe confirmado: ele estava nO Caminho.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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