O brasileiro ama o inconsciente. Há povos que detestam. O brasileiro sabe que no fundo as coisas não são bem como se apresentam, que há sempre outra janela, outro enfoque, e que com o desejo não se faz ortopedia. A régua e o compasso da vida brasileira vêm de sua música e não da engenharia. Um acerto, um jeitinho são sempre possíveis. O brasileiro é sério demais para se tomar muito a sério. O Brasil é um país propicio à psicanálise, pois esta só se desenvolve em comunidades que suportam questionar as soluções para o desejo humano, pondo em dúvida modelos padronizados. A psicanálise se dá muito mal em países totalitários – militar, política ou moralmente -, que estabelecem padrões coletivos de comportamento, onde todos gostam do mesmo sanduíche e vaiam o mesmo filme.

Jorge Forbes

[Forbes, Jorge. Você quer o que deseja? São Paulo: Best Seller, 2003, p. 49].

Estava relendo alguns trechos do livro do psicanalista Jorge Forbes, Você quer o que deseja?, quando me deparei com uma parte que o autor intitulou “Sigmund Freud no Brasil”. Frequentemente retorno a este livro para reler alguns trechos. Geralmente adoto o seguinte roteiro na leitura de um livro: primeiro, leio a contracapa e as orelhas; depois, examino o índice e leio, quando existe, os dados biográficos do autor; a seguir, o folheio página por página até a última; passo, então, à leitura, grifando e assinalando trechos, valendo-me, para tanto, de vários símbolos que vou respingando à margem das páginas; concluída a leitura, esqueço o livro por algum tempo; por fim, revejo as partes grifadas e/ou assinaladas.

Em alguns casos, o livro vai para uma prateleira especial: são aqueles a que retorno com certa frequência. Entre estes se encontram, por exemplo, os Ensaios, de Montaigne; os Ensaios, de Emerson; a Autobiografia de um Iogue, de Paramahansa Yogananda; Silogismos da Amargura e Breviário de decomposição, de E. M. Cioran; o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa; Minha vida e minhas experiências com a verdade, de Mahatma Gandhi; Água viva e A maçã no escuro, de Clarice Lispector; Como ser feliz sem dar certo e outras histórias de salvação pela bobagem, de Carlos Moraes, entre outros. Atribuí até uma denominação a estes livros, chamo-os “Livros-talismã”.

Pois bem, estava relendo alguns trechos do livro de Jorge Forbes, quando me deparei com uma afirmação que ele faz acerca da relação do Brasil com a psicanálise, em uma das partes do livro a qual tem por título “Sigmund Freud no Brasil”. Segundo o autor, há muita afinidade entre o Brasil e a psicanálise. Forbes atribui essa afinidade a dois aspectos peculiares tanto à psicanálise quanto à nossa brasilidade.

Escreve Forbes: “Freud está presente em vários segmentos da vida intelectual, científica e artística do Brasil. Podemos medir essa presença por meio de dois aspectos distintos, embora complementares, de sua obra: as determinações de pensamentos inconscientes em qualquer produção humana e a impossibilidade de obter garantia nas escolhas – deve-se incluir o risco em qualquer cálculo, mesmo no mais bem-planejado” (p. 49).

Considerar as determinações inconscientes como um fato que, sob diversos aspectos, conduz nossas decisões, é parte do jeito de ser brasileiro, pois “O brasileiro sabe que no fundo as coisas não são bem como se apresentam, que há sempre outra janela, outro enfoque, (…)” (p. 49). Essa característica faz de nós um povo que tem na flexibilidade uma de suas características mais peculiares e, ao mesmo tempo, mais virtuosas.

Entra em cena o segundo aspecto apontado por Forbes, que ele chama de “cálculo incompleto”, o qual “aponta ao que se chama Real, o limite da significação, a pedra no meio do caminho, diante da qual se deve inventar uma solução criativa. Não dá para simplesmente atirá-la, porque se corre o risco de ir junto” (p. 50). A flexibilidade peculiar ao nosso povo favorece, ao mesmo tempo, a inventividade, outra característica muito nossa, capaz de levar-nos a driblar (o uso da palavra, aqui, não foi casual, mas proposital, os leitores devem ter intuído por que) as situações mais periclitantes: “A desconfiança do povo brasileiro em relação aos padrões rígidos de comportamento favorece a sua inventividade ante os piores abismos” (p. 34).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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