O resultado da experiência de conversão/vocação na qual Paulo veio a conhecer Cristo é uma completa transformação. (…) Ser transformado inclui esquecer “o caminho percorrido” e ansiar “pelo que está à frente”.     

J. M. Everts

Hawthorne, Gerald F.; Martin, Ralph P.; Reid, Daniel G. [orgs]. Dicionário de Paulo e suas cartas. Tradução de Barbara Theoto Lambert.- São Paulo: Paulus: Vida Nova: Loyola. Artigo “Conversão e vocação de Paulo”,  p. 262/268].

No dia 13 de novembro havia postado neste blog um texto em que comecei a tratar do episódio bíblico da conversão de São Paulo. Tinha prometido dar prosseguimento ao assunto na semana seguinte, mas, por motivos alheios à minha vontade, passei alguns dias sem escrever. Faço-o, porém, agora.

Há muitos anos venho lendo sobre a metanóia, uma mudança de rumo que acontece vez por outra na vida de algumas pessoas. O assunto sempre me pareceu muito palpitante. Jung, conforme mencionei no texto anterior, dedicou alguns de seus escritos ao tema. Tenho o caso da conversão de São Paulo na estrada de Damasco como um dos exemplos mais perfeitos de metanóia. No caso do apóstolo dos gentios, sua vida sofre uma inversão total no momento em que se dirigia a Damasco com o intuito de coibir as atividades levadas a efeito pelos seguidores de Cristo. Relata o texto bíblico:

“Enquanto isso, Saulo só respirava ameaças e morte contra os discípulos do Senhor. Apresentou-se ao príncipe dos sacerdotes, e pediu-lhe cartas para as sinagogas de Damasco, com o fim de levar presos a Jerusalém todos os homens e mulheres que achasse seguindo essa doutrina” (At 9, 1-2).

Aprecio especialmente o texto bíblico da tradução por mim utilizada aqui, a  Bíblia Sagrada Ave-Maria, pela veemência que o evangelista imprime à frase que abre a narrativa. As palavras “ameaças” e “morte” sobressaem com grande vigor, amparadas pelo verbo respirar. No ato da respiração trazemos para dentro de nós uma lufada de ar. Portanto, o ar que Saulo respirava sabia a ameaças e morte. Parece-nos que o afã de coibir quaisquer atos dos seguidores a quem Saulo perseguia estava absolutamente arraigado em suas entranhas. Saulo era a própria encarnação da perseguição e da morte.

Faço questão de salientar bem este aspecto da figura de Saulo na ocasião, porque nele sobressai a primeira condição para que a metanóia aconteça. Que condição é essa? Antes que seja dado o grande passo, que aconteça a grande mudança de rumo, é preciso que o indivíduo esteja imerso em uma determinada situação num estágio tal que atinja o paroxismo. É preciso que ele esteja no limite. No caso de Saulo, ele se dedicara, como se diz popularmente, com unhas e dentes a perseguir os cristãos. Talvez se possa imaginar o ódio que ele sentia por aqueles homens e mulheres.

Essa é uma característica muito peculiar da metanóia. Para que a pessoa assuma uma determinava perspectiva de vida, é necessário que, antes, ela passe pela condição oposta. Não posso afirmar que essa seja uma condição indispensável, por isso preferi usar a palavra necessário. Tanto no caso de Saulo quanto no de Santo Agostinho, essa condição foi, suponho, indispensável. Mas nem sempre a metanóia se dá de forma tão espetacular e radical quanto nos dois exemplos citados. Prefiro sustentar a hipótese de que haja gradações. No entanto, parece-me, quanto maior o paroxismo da situação, mais radical será a mudança experimentada.

No caso de Saulo, tendo em vista a situação existencial em que se encontrava, estavam postas as condições para que uma grande mudança de rumo ocorresse em sua vida. Não deixa de ser muito simbólico o fato de que ele se encontrava numa estrada. Quem está numa estrada, segue um determinado rumo, está a caminho de. A questão é que, nem sempre, a estrada vai dar exatamente aonde pensávamos inicialmente que fosse. É algo mais ou menos assim: temos os nossos planos, mas estes, nem sempre, coincidem com um plano outro que para nós está traçado, o qual desconhecemos. Então, num determinado momento, nossa trajetória tem que ser interceptada, sob pena de seguirmos por um caminho que não era exatamente o nosso. Foi exatamente o que aconteceu com Saulo quando se encontrava a caminho de Damasco. Dessa interceptação trataremos na próxima semana.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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