joao_da_cruzOs hippies da década de 1970 descobriram no místico espanhol um grande mestre de ioga, proposto como tal por um filósofo hindu. Os jovens procuraram nos escritos desse santo a “erva” e as técnicas refinadas que teriam provocado aquelas extraordinárias “viagens” da mente. Contudo, em São João da Cruz a experiência mística não se traduzia em um vago imergir no abismo da divindade, pois que sua límpida fé fundava-se na Encarnação de Cristo e no mistério trinitário. Além disso, João não foi um contemplativo isolado do mundo, tomando-se em consideração que percorreu a pé 27 mil quilômetros, para acompanhar de perto as fundações dos carmelos reformados, que tantos sofrimentos lhe causaram.

Mario Sgarbosa

[Sgarbosa, Mario. Os santos e os beatos da Igreja do Ocidente e do Oriente. Tradução de Armando Braio Ara. – São Paulo: Paulinas, 2003, p. 703].

Há 418 anos, na noite de 13 para 14 de dezembro de 1591, uma sexta-feira, falecia em Úbeda, na Espanha, um homem que com o tempo seria consagrado como um dos maiores místicos – se não o maior – que o cristianismo legou à humanidade: São João da Cruz. Nascido em Fontiveros (Ávila), em 1542, João de Yepes, seu nome de família, entrou para o Carmelo em 1563, aos vinte e um anos de idade. Em 1568, estando em andamento a reforma do Carmelo levada a efeito por Santa Teresa d’Ávila, e como a reformadora precisasse de alguém a quem pudesse confiar a reforma do ramo masculino da Ordem, encontra São João da Cruz, a quem confiará a difícil missão. O primeiro encontro dos dois místicos dá início a uma amizade que só findará com a morte do Doutor Místico.

São João da Cruz viveu apenas 49 anos. Mesmo assim teve uma vida intensa, tanto como poeta e escritor quanto como religioso absolutamente devotado à Ordem Carmelita. Tendo começado a escrever já relativamente tarde, aos 35 anos, por volta dos 44 já havia encerrado sua atividade literária, uma vez que a partir dessa idade até o fim da vida não escreveria mais nada. Mas os nove anos dedicados à escrita foram suficientes para nos legar algumas das mais belas páginas da poesia e da mística ocidental.

Além das poesias, São João da Cruz escreveu quatro grandes tratados espirituais: Subida do Monte Carmelo, Noite Escura, Cântico Espiritual e Chama Viva de Amor. Algumas de suas poesias guardam uma semelhança estrutural muito grande com os repentes dos cantadores nordestinos, em que é dado um mote para que o poeta, a partir daí, desenvolva o tema em rimas. Poderíamos, a propósito, citar como dois grandes exemplos as Glosas sobre um êxtase de alta contemplação e as Glosas da alma que pena por não ver a Deus. No primeiro, o mote é o seguinte: “Entrei onde não soube/ E quedei-me não sabendo/ toda a ciência transcendendo”. A partir do mote o autor escreve um poema de oito estrofes de sete versos, das quais cito as três primeiras:

1. Eu não soube onde entrava/ Porém, quando ali me vi,/ Sem saber onde estava,/ Grandes coisas entendi;/ Não direi o que senti,/ Que me quedei não sabendo,/ Toda a ciência transcendendo.  2. De paz e de piedade/ Era a ciência perfeita,/ Em profunda soledade/ Entendida (via reta);/ Era coisa tão secreta,/ Que fiquei como gemendo,/ Toda a ciência transcendendo.  3. Estava tão embevecido, Tão absorto e alheado,/ Que se quedou meu sentido/ De todo o sentir privado,/ E o espírito dotado/ De um entender não entendendo,/ Toda a ciência transcendendo  (São João da Cruz. Obras Completas. Org. Frei Patrício Sciadini, O.C.D., Petrópolis: Vozes, em co-edição com o Carmelo Descalço do Brasil, 1984. Glosas sobre um êxtase de alta contemplação, p. 38).

Ler São João da Cruz, especialmente os grandes tratados orgânicos, onde a via mística para Deus é expressa de forma sistemática, não é tarefa fácil. Essa observação, aliás, vale de modo geral para qualquer obra de cunho místico. No caso de São João da Cruz, porém, a densidade do texto oferece especialmente a quem se inicia em sua obra algumas dificuldades, diferentemente do que acontece com as obras de Santa Teresa d’Ávila que também tratam do mesmo assunto, de leitura bem mais fácil, embora não menos complexa.

Mas ler São João da Cruz é um deleite, e o sacrifício tem recompensa certa. Aos que querem se iniciar na obra do Doutor Místico da Igreja, sugerimos  começar pelas poesias. Isso permitirá ao neófito se familiarizar um pouco com o universo místico do autor, e com o tom poético que ele naturalmente imprime a todos os seus escritos. Uma vez tendo conhecido sua obra poética, pode-se arriscar iniciar a leitura dos grandes tratados orgânicos, começando por seu primeiro tratado de mística, Subida do Monte Carmelo, onde o autor tenta “explicar e fazer compreender a noite escura pela qual passa a alma, antes de chegar à divina luz e perfeita união do amor de Deus…” (p. 136).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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