Ela emergiu do mundo dos judeus da Europa Oriental, um mundo de homens santos e milagres que já havia experimentado seus primeiros anúncios de danação. Trouxe a ardente vocação religiosa daquela sociedade agonizante para um novo mundo, um mundo em que Deus estava morto. Como Kafka, ela se desesperou; mas, à diferença de Kafka, acabou, de modo atormentado, bracejando em busca do Deus que a abandonara. Narrou sua busca em termos que, como os de Kafka, apontavam necessariamente para o mundo que ela deixara para trás, descrevendo a alma de uma mística judaica que sabe que Deus está morto, mas que, no tipo de paradoxo que perpassa toda a sua obra, está determinada a encontrá-Lo mesmo assim.

A alma exposta em sua obra é a alma de uma mulher só, mas dentro dela encontramos toda a gama da experiência humana. Eis por que Clarice Lispector já foi descrita como quase tudo: nativa e estrangeira, judia e cristã, bruxa e santa, homem e lésbica, criança e adulta, animal e pessoa, mulher e dona de casa. Por ter descrito tanto de sua experiência íntima, ela podia ser convincentemente tudo para todo mundo, venerada por aqueles que encontravam em seu gênio expressivo um espelho da própria alma. Como ela disse, “eu sou vós mesmos”.

Benjamin Moser

[Moser, Benjamin. Clarice, uma biografia. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 16.] 

Dando prosseguimento ás rodas de conversa que vem realizando quinzenalmente em parceria com a Livraria Cultura, no auditório desta, o Jornal O Povo promove nesta quarta-feira, às 19 horas, um bate-papo com Benjamin Moser, autor do livro “Clarice,”. A conversa será mediada pelo jornalista Dellano Rios.

Fiquei eufórico quando soube do evento. Apaixonado pelos escritos de Clarice Lispector e por tudo o que lhe diz respeito, nunca perco a oportunidade de incorporar à minha biblioteca qualquer novo livro que seja publicado sobre a escritora. Assim, tão logo soube da publicação da biografia escrita por Benjamin Moser, em 2009, tratei logo de adquiri-la. Agora teremos a oportunidade de ter em Fortaleza o autor para falar ao vivo sobre sua biografada.

Benjamin Moser

Benjamin Moser é um escritor norte-americano apaixonado por Clarice Lispector. Para escrever a biografia da escritora brasileira (deixemos de lado as questões quanto à origem ucraniana da autora), passou cinco anos percorrendo as diversas cidades por onde passou Clarice, uma vez que ela, tendo casado com um diplomata, viveu em diversos países. De suas andanças e leituras resultou um livro muito bem fundamentado, que esmiúça, simultaneamente, a vida e a obra da escritora.   

O título do livro, escrito originalmente em inglês, é “Why this wordl”. Na tradução brasileira, embora na ficha catolográfica conste o título “Clarice, uma biografia”, na capa aparece apenas “Clarice,” ou seja, “Clarice vírgula”. Não sei se foi essa a ideia, mas considerei tão pertinente quanto inspirado o título adotado, pois a vida de Clarice Lispector não comporta um ponto final.

Na Introdução da biografia, com muita propriedade intitulada A Esfinge, Benjamin Moser escreveu: Quando morreu, em 1977, Clarice Lispector era uma das figuras míticas do Brasil, a Esfinge do Rio de Janeiro, uma mulher que fascinava os brasileiros praticamente desde a adolescência. (…) ´Clarice Lispector´ já chegou a ser considerado um pseudônimo, e seu nome original só foi conhecido depois da sua morte. Onde exatamente ela nasceu e quantos anos tinha também eram pontos pouco claros. Sua nacionalidade era questionada, e a identidade de sua língua nativa era obscura. Uma autoridade atestará que era de direita, e outra, que era comunista. Uma insistirá que era uma católica devota, embora na verdade fosse judia.

O que torna tão peculiar essa teia de contradições é que Clarice Lispector não é uma figura nebulosa, conhecida a partir de fragmentos de antigos papiros. Ela morreu há pouco mais de trinta anos. Muitas das pessoas que a conheceram bem ainda estão vivas. Foi alguém de destaque praticamente desde a adolescência, sua vida foi documentada à exaustão na imprensa, e deixou uma extensa correspondência.

Ainda assim, poucos grandes artistas modernos são, em essência, tão pouco familiares quanto ela. Como pode permanecer tão enigmática uma pessoa que viveu numa grande cidade do Ocidente, no meio do século XX, que deu entrevistas, morou em grandes prédios de apartamentos e viajou de avião? (p. 12ss.).

Não sei se terei oportunidade, mas, caso o tenha, estou indo para o bate-papo com Benjamin Moser munido de uma pergunta que pretendo fazer ao autor: vou perguntar a ele se, depois de tantos anos de leituras e pesquisas, depois de todo o seu percurso pelo universo clariceano, ele considera ter desvendado o enigma, o melhor, a esfinge, Clarice Lispector.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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