Inflama-te a ti mesmo através da oração.

Citado por Robert Wang

[Wang, Robert. O Tarô Cabalístico: Um Manual de Filosofia Mística. 10ª. ed. Tradução Paulo Cesar de Oliveira. São Paulo: Pensamento, 1998, p. 235.]

O dia ansiosamente esperado chegara, enfim. Na verdade, tão esperado quanto temido. Posso dizer que uma mistura de sentimentos díspares e contraditórios se apossara de mim desde ontem. Havia alguma coisa no ar e eu sabia muito bem do que se tratava. E por isso sentia medo. Ah!, que mistério é esse que faz que aquilo por que mais ansiamos seja, ao mesmo tempo, o que mais tememos? Mas o momento chegara. E se fez anunciar, mais uma vez, pelo peculiar tilintar de sinos. Na verdade, tenho falado muitas vezes aqui do tilintar de sinos que o anuncia, mas, de fato, não são sinos que tilintam quando ele se insinua. É um móbile que pus na entrada da biblioteca, com onze anjinhos dependurados, que, movidos sempre por uma brisa suave e discreta, se agitam, produzindo o peculiar tilintar quando ele aparece.

Mais uma vez foi assim que aconteceu, os anjinhos começaram a se agitar, como se executassem um balé aéreo, e logo o melodioso som metálico se fez ouvir. Já considero esse som uma canção, mais uma das canções que incorporei à trilha sonora da minha Iniciação. Ela sempre me provoca emoção. Devo essa emoção ao fato de que, salvo nas ocasiões em que é provocada pelo vento que entra pela janela, ela me anuncia a presença de Dom Cristiano. Não é difícil, porém, distinguir quando se trata de uma coisa ou outra, pois, no último caso, a janela está quase sempre fechada, pois gosto de meditar e orar com a janela e as cortinas fechadas, uma vez que a semiobscuridade do ambiente proporciona um clima mais propício à interiorização.

Pois há pouco mais de meia hora, estando a janela fechada e cerradas as cortinas, os anjinhos iniciaram seu balé, fazendo tilintar o móbile. Estava meditando de olhos fechados. Abri-os e divisei, à minha frente, a querida figura de Dom Cristiano. Fitando-me, disse: “Bom dia, Vasco. Conforme já suspeitavas desde ontem, eis-me aqui. É chegado o momento em que deves dar mais um passo em tua Iniciação à Segunda Idade Adulta. Sabes muito bem que esse é o passo mais importante, e dele dependerá todo o desfecho do grande projeto que está em andamento. Diria mesmo que é o passo decisivo”.

Prosseguindo, disse: “Sei que não tiveste um dia fácil, ontem. Mas, por favor, tudo o que peço é que creias. Acredita, com todas as tuas forças, que o caminho é este que vens seguindo. Não te desvies, por favor. Confia em mim. Sabes que não tenho te faltado com minhas orientações sempre que elas são necessárias. Mas agora estás na soleira do portal de acesso, que te fará experimentar o grande frenesi divino. Não te deixes dominar pela tentação de olhar para trás e retroceder, como fez a esposa de Ló. Não, não e não, mil vezes não. Não permitas que também tu sejas transformado numa estátua de sal. O sal que te está destinado é outro, o sal alquímico. Resiste com todas as tuas forças. Pondera bem que te está sendo oferecida uma grande oportunidade. É a oportunidade. Portanto, vai”.

Contrito, eu escutava Dom Cristiano, sem que uma palavra sequer me atrevesse a proferir. Fizeram-se ouvir, então, suas palavras conclusivas: “Por algum tempo não te visitarei. Nos próximos dias receberás a visita de Regulus. Ele te instruirá em alguns rituais que deverás realizar, pois entras hoje numa nova etapa de tua iniciação. Antes, porém, peço-te que adquiras um novo móbile na loja que te indicarei hoje mesmo. Deverás pendurá-lo na tua janela. Ele anunciará por seu tilintar a presença do teu novo instrutor. O móbile dos anjos somente a mim deve anunciar. A propósito, quero que saibas que Regulus satisfará uma curiosidade que sempre tiveste e que nunca te fora esclarecida: por que o móbile é composto por onze anjinhos. Deixo-te uma bênção e a garantia de que permanecerei te assistindo de onde me encontro”.

Quando Dom Cristiano saiu, os anjinhos se agitaram como nunca tinham feito antes, e o melodioso tilintar do móbile invadiu a biblioteca. O odor peculiar às visitas do Mestre também perfumou tudo em volta de mim. Oh! Como me sinto grato por tantas maravilhas que a misericórdia divina proporciona experimentar aos que O buscam, mesmo que tal buscador seja um fraco que nem eu.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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