Encontramos em toda pessoa a ideia do Adão Cadmon – o Cristo em nós. Cristo é o segundo Adão, o que corresponde nas religiões orientais à ideia do atmã ou do homem total, do homem original, o homem “todo redondo” de PLATÃO – que é simbolizado por um círculo ou por uma pintura com motivos redondos. Encontramos todas essas ideias na mística medieval, na literatura alquimista em geral, desde o primeiro século da era cristã. Encontramo-las no gnosticismo e encontramos muitas delas naturalmente no Novo Testamento, em Paulo. Mas é um desenvolvimento absolutamente consistente da ideia de Cristo em nós – não o Cristo histórico fora de nós, mas o Cristo dentro de nós; e o argumento diz que é imoral deixar Cristo sofrer por nós, que ele já sofreu que chega e que devemos finalmente carregar nossos próprios pecados e não colocá-los sobre Cristo – nós todos deveríamos carregá-los em conjunto. Cristo expressa a mesma ideia quando diz: “Eu estou presente no menor de vossos irmãos”. E o que dizer, meu caro, se o menor de teus irmãos fosse você mesmo – o que dizer então? Então você percebe que Cristo não deveria ser o menor em sua vida e que nós temos um irmão dentro de nós que é realmente o menor de nossos irmãos, muito pior que o pobre mendigo a quem demos comida. Isto significa que temos dentro de nós uma sombra, alguém muito mau, alguém extremamente pobre, mas que precisa ser aceito. O que fez Cristo – sejamos bem banais – quando o consideramos como ser puramente humano? Cristo foi desobediente à sua mãe; Cristo desobedeceu à sua tradição; Cristo se apresentou como enganador e representou esse papel até o amargo fim; ele sustentou sua hipótese até seu triste fim. Como nasceu Cristo? Na maior miséria. Quem era seu pai? Era filho ilegítimo – do ponto de vista humano, uma situação lamentável: uma pobre moça que tinha um filho pequeno. Isto é o nosso símbolo, isto somos nós; nós somos tudo isto. E se alguém viver sua própria hipótese até o amargo fim (e tiver que pagar talvez com a morte) saberá que Cristo é seu irmão.

C. G. Jung  

[Jung, C. G. III. A vida simbólica. Em: Jung, C. G.  A vida simbólica: escritos diversos. Tradução de Araceli Elman, Edgar Orth; revisão literária de Lúcia Mathilde Endlich Orth; revisão técnica de Jette Bonaventura. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. – (Obras completas de C. G. Jung; v. 18/1), p. 279.]

Ontem à tarde ele me apareceu. Sem qualquer aviso prévio, ele surgiu de repente bem à minha frente, a exemplo do que acontecera com Dom Cristiano. Aliás, de forma mais estranha ainda, pois ele me apareceu em plena rua, enquanto eu caminhava absorto em direção à livraria Paulus. Senti a sua presença pelo toque discreto no meu ombro. Virei a cabeça e ele, de chofre, surgiu bem ao meu lado. Apareceu e foi logo falando:

“Salve, meu velho amigo Vasco. Vejo que está indo à Paulus. Um belo livro, sem dúvida, o que pretendes adquirir. É um livro bem caro, mas vale o preço, uma obra de referência. Além disso, tem tudo a ver com a tua hipótese. Mas tua ida hoje à livraria será vã, pois não encontrarás o livro por lá, todos os exemplares disponíveis foram vendidos. De qualquer maneira, poderás encomendá-lo”.

Intrigado com a referência ao que ele chamou de minha hipótese, indaguei: “Hipótese? Que hipótese? Não tenho hipótese nenhuma”.

“Ah!, tem, tem sim”, retrucou. “Você não sabe, mas tem uma hipótese, sim. Tenho te observado à distância nos últimos dias, por isso posso te assegurar que tens uma hipótese, sim, e estás disposto a vivê-la integralmente, até as últimas consequências. Aliás, sei que almejas entrar no templo-castelo brevemente. E não tenho dúvida de que o farás, pois ele está quase aberto para ti. Mas não penses que me deixarás de fora quando lá adentrares.  Pensavas que terias por companhia apenas Dom Cristiano. Estavas enganado, meu amigo. Se esqueces de mim, não lograrás entrar no templo-castelo. O momento de tua iniciação será muito belo, e eu estarei lá para presenciá-lo. Posso até te adiantar o seguinte: ao cruzares o umbral, terás em tua companhia dois amigos, um à tua direita e outro à tua esquerda: Dom Cristiano e eu, o incômodo Artaban. Muitas vezes tenho te parecido incômodo, mas estejas certo de que, sem a minha companhia, não entrarás no templo-castelo. Sou, portanto, um incômodo necessário, muito mais necessário do que poderias supor”.

Estaquei de repente no momento em que deixava o parque das crianças, que tomara como atalho no caminho para a Paulus. Antes que eu dissesse qualquer coisa, Artaban completou, finalizando sua inusitada visita:

“Não digas nada. Hoje não te compete falar nada, apenas ouvir. Aliás, acho que alguém te fez essa mesma observação há poucos dias, não? Bem, para concluir, meu amigo Vasco, pois não posso mais me demorar contigo, quero que, ao chegar em casa hoje, leias um texto do velho mestre de Kesswil.  Está no volume dezoito um de suas Obras Completas. Na verdade, nem precisa ler o capítulo na íntegra, pois o que quero mesmo que leias é o trecho da página 279 no qual ele fala de Cristo. Depois de o leres, compreenderás melhor a minha referência à hipótese. E comprenderás igualmente o quanto te sou necessário, ainda que, não raro, te pareça incômodo. Até mais ver, meu amigo”.

À noite, ao chegar em casa, a primeira coisa que fiz foi pegar o livro de Jung e pôr sobre o birô. Depois do jantar, fui ler o texto. Reli-o umas quatro vezes. Que texto inquietante!

Esta madrugada eu teria um sonho de cujo sentido, somente ao escrever este relato para o Sincronicidade, me dei conta, o qual está diretamente relacionado ao texto de Jung e com as observações de Artaban. Mas isso é assunto para outra ocasião.

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

View All Articles